Capítulo 5 – Tiago, mãos que falam – coração que sente
Autores: Susana Maurício e Elisabete Machado
Palavras-chave: 2.º ciclo de ensino básico, estratégias familiares, língua gestual, surdez
Citação: Maurício, S. & Machado, E. (2023). Tiago, mãos que falam – coração que sente. In M. Francisco, C. Tomás & S. Malheiro (Orgs.). 12 histórias educacionais: Ser diferente na diversidade. Práticas pedagógicas em contextos pouco visíveis. [Online]. LEAD, Universidade Aberta.
Do nascimento ao 2.º ciclo
Este capítulo intitula-se Tiago, mãos que falam – coração que sente. O meu nome é Susana Maurício e venho contar a história do meu filho Tiago, que é Surdo profundo e tem agora doze anos. Bom, vamos começar do início!
O Tiago, o nosso segundo filho, nasceu em 2010. Temos também a Sarah, a irmã mais velha, que tem agora quase quinze anos. Quando o Tiago nasceu, ela tinha dois aninhos, era uma bebé. Foi uma enorme alegria para todos nós, família, a vinda do nosso segundo filho. E de repente, deparamo-nos com uma grande surpresa.
O Tiago é Surdo!
E arranca esta grande história, não é? O Tiago é surdo. Tenho um filho surdo e agora? Há toda uma fase inicial de diagnóstico, de exames, de grandes dúvidas, de grandes anseios.
E não é fácil, não é fácil para nenhum pai, nenhuma mãe, de repente receber uma notícia tão fora da caixa! O que viemos a perceber ao longo do tempo? E felizmente muito rapidamente: entendemos que a liberdade também é fora da caixa. Que de facto existe liberdade e que ela pode ser escolhida. E começa esta nossa grande história!
Quando o Tiago nasceu, tal como todos os bebés, fez o diagnóstico auditivo neonatal, um exame que é feito de forma transversal a todas as crianças que nascem. O resultado não foi conclusivo. Como podia haver várias explicações para tal, voltámos a repetir este exame. Voltou a resultar em não conclusivo, e então passámos aqui por esta fase: lá estávamos nós a fazer exames mais sérios e, fizemos um ERA (Potenciais Evocados Auditivos). E com este exame, aos quatro meses, tivemos a confirmação do diagnóstico de surdez profunda.
Sucedeu-se toda uma fase de enorme desgaste, de muitas consultas, muitas idas ao médico, ao hospital e, portanto, como disse, ninguém está preparado para no início de uma nova vida e da grande felicidade que é a vinda de um filho, passar por todo este caminho, logo tão intenso. Aos sete meses do Tiago, tivemos realmente a certeza, a confirmação total deste diagnóstico de surdez profunda e só mais tarde, quase com dois anos de idade, descobrimos a origem da surdez: o Tiago é Surdo profundo por origem genética. Tanto eu como o pai do Tiago temos uma mutação genética que 4% da população mundial tem e, por coincidência ou não, ambos a temos. O Tiago nasceu com este gene ativo e, portanto, com a surdez profunda.
E de facto esta primeira grande dúvida: tenho um filho Surdo, e agora?
Passámos por um processo muito grande de procura de informação, de pesquisa. Muitas dúvidas em relação ao presente, àquela data, e ao futuro. Como é que vamos fazer tudo isto? Como é que nos vamos adaptar a esta grande novidade, a esta realidade? Pesquisámos, pesquisámos. E percebemos que em Portugal, quando pesquisamos sobre surdez, a informação que nos chega de uma forma quase exclusiva, tem a ver com reabilitação auditiva. De repente, estamos envoltos em médicos, em dispositivos, em produtos de apoio, na escolha entre os aparelhos auditivos e os implantes cocleares. É uma fase muito, muito densa para quem começa a caminhada de um filho. Seja o primeiro, o segundo, o terceiro, mas é uma caminhada muito densa.
Por sorte, no meio de toda esta pesquisa, o que me estava a faltar era algo essencial para mim enquanto pessoa, que era o paradigma humano. Onde é que está o paradigma identitário, cultural, a pessoa surda, o que é, onde é que eu vou encontrar estas pessoas?
Consegui chegar à Associação Portuguesa de Surdos (APS). E com ela à Língua Gestual Portuguesa (LGP)! Hoje, colaboro diretamente com a Associação Portuguesa de Surdos. Faço parte da direção, mas à data nem tão pouco sabia da sua existência. Foi aqui que descobri a APS e lembro-me muito, muito bem do primeiro dia que lá fui, da campainha que tocava sem som, com uma luz. De entrar na associação e de parecer que estava vazia, porque estava tudo em silêncio e de repente, encontro a conversa mais dinâmica que já tinha visto na minha vida. Havia imensas pessoas a conversar com dinamismo, com uma rapidez, com uma leveza. E o meu coração abriu naquele dia.
Foi aqui que eu e a minha família iniciámos o nosso percurso na aprendizagem da Língua Gestual Portuguesa, a maior dádiva que tivemos. Foi muito, muito bonito encontrar estas pessoas Surdas, encontrar a solução social, a dimensão humana. E começámos aqui, com este encontro, a desenvolver as nossas aprendizagens, mas não só linguísticas. Com este encontro, de facto, tive resposta para a primeira pergunta que tinha feito lá atrás. Houve uma pergunta que fiz a mim mesma enquanto mãe, quando comecei a pensar em todos os meus medos em relação ao futuro do Tiago, em relação às oportunidades, às escolhas, a toda uma sociedade que eu não entendia como sendo assim tão acessível, tão preparada e, fiz uma questão a mim própria. Lembro-me de estar a pensar comigo mesma: “Bom, eu quando penso, ouço a minha voz. E o meu filho? Como é que ele vai pensar?” Mais do que tudo, mais do que como vai falar, queria perceber como é que o meu filho iria pensar. E a resposta claramente é: em Língua Gestual Portuguesa.
A Língua Gestual Portuguesa, que é uma língua oficial no nosso país, não é uma linguagem, como sempre ouvimos em todo o lado e como lemos nas notícias. É uma língua com estrutura própria, com gramática e é uma língua com características tão belas. É uma língua tão ampla, é uma língua eloquente, também subjetiva e poética, abriu-se aqui todo um universo. Não só em torno da língua, mas em torno dos seus falantes.
Estatisticamente, 95% das crianças Surdas nascem de mães e pais ouvintes. Portanto, é fácil deduzir sobre a imersão linguística que qualquer criança tem desde o momento em que nasce. Nós nunca nos preocupámos em pensar em relação à nossa filha mais velha, a Sarah: “Como é que vamos comunicar? Como é que vamos ensinar este conceito, esta palavra?” Nunca nos preocupámos com isto, é inato, comunicação no seio familiar. Desde sempre, as crianças ouvintes começam a interagir, olhar, ouvir e há uma imersão linguística, casual ou provocada, mas, seja como for, ela está sempre a acontecer. No caso de uma criança Surda, isso não acontece. No caso uma criança Surda, este processo tem de ser todo pensado, causado intencionalmente. Mas nós queremos naturalidade, nós queremos comunicar, comunicar com e em amor e não queremos estar sempre a pensar neste processo de provocar a aprendizagem. Como fazê-lo? A resposta é clara:
Aprender Língua Gestual Portuguesa.
Poder veicular tudo aquilo que queremos dizer e fazer, sem barreiras. Sem barreiras, começar a construir este caminho de comunicação total e acessível. A importância da aquisição precoce da Língua Gestual Portuguesa numa criança Surda é imensa. É urgente porque, ao passo que, como disse, qualquer criança, desde o momento em que nasce, está sujeita a esta imersão linguística, na criança Surda então tem de ser provocada. É urgente, é um processo onde não se pode perder tempo e é um processo delicioso, riquíssimo. Eu lembro-me de, nas minhas primeiras aulas de língua gestual, ir com uma sede incrível, com imensas perguntas, “como é que se diz?” Tal e qual como uma criança que quer aprender a falar. Também eu era uma criança que queria aprender a falar! E nesta fase queria aprender a falar para poder ensinar. Porque esta tarefa de educar e de ensinar sobre o mundo compete-nos a nós, pais e a nós, famílias, e é uma alegria para mim, a maior da vida, poder cumprir este papel. Então a urgência de aprender e de não deixar a tarefa entregue a terceiros fez com que começássemos este caminho o mais rápido possível.
E foi um caminho muito bonito porque, de facto, além da tal dimensão linguística, veio a dimensão humana. Da mesma forma que nós nos abrimos à Comunidade Surda, tivemos uma abertura incrível desta Comunidade que hoje é também a minha. Em relação a nós e à nossa família, fez-se casa. Estabeleceram-se relações muito, muito profundas. A minha primeira professora de Língua Gestual Portuguesa tornou-se a madrinha do meu filho. Surgiram modelos linguísticos, culturais, humanos, não só para o meu filho, mas para toda a família, porque de facto uma criança Surda não tem de viver dividida entre dois mundos, entre o mundo dos Surdos e o mundo dos ouvintes. Eu só conheço um mundo, o mundo das pessoas. As pessoas têm de estar juntas e a Comunidade Surda constitui-se não só das pessoas Surdas, mas de todas as pessoas ligadas a elas, de todos os que utilizam as mãos para falar. A Comunidade Surda é feita de Surdos e de ouvintes, famílias, professores, amigos, de todo um entrelaçar de seres humanos. E isto sim, trouxe-me a resposta e, por outro lado, o alívio dos meus anseios.
Tive uma questão, neste paradigma de Surdidade, conceito conhecido pela Comunidade Surda, mas não só a portuguesa, é um conceito internacional. A Surdidade tem a ver com a surdez vista do ponto de vista da identidade, da cultura e todo este paradigma de Surdidade envolveu-me tanto. E segui o caminho com uma naturalidade que meses antes não esperava ser capaz de conseguir. Enfrentar, caminhar, resolver. Mas tive uma surpresa quando comecei a frequentar as aulas de LGP. Esperava encontrar, à semelhança de nós, outros pais e mães, pessoas na mesma situação, uma rede de partilha que não encontrei. Eram muito poucos e foram muito poucos ao longo de todos estes anos, os pais e mães que encontrei formalmente a aprender Língua Gestual Portuguesa e se sim, dentro de iniciativas de escolas de referência, em pequenas formações, mas de um ponto de vista formal e integrado na Comunidade Surda, de facto, nunca encontrei muitas famílias ao longo dos anos. Tenho vindo a perceber que isto acontece por influência do modelo médico. Aqui gostava de deixar um apontamento. Como é óbvio, é uma parte que não podemos de todo descurar, esta questão da reabilitação, para quem queira chamar-lhe assim, uma vez que não vejo um ser humano como alvo de reabilitação. Mas esta questão da reabilitação auditiva e das escolhas entre aparelhos auditivos, implantes cocleares, exames, audiogramas, de facto, há toda essa questão que não pode ser descurada. Mas uma coisa é certa, independentemente da escolha que todos nós vamos tomar, sempre pelo melhor para os nossos filhos, a imersão linguística, a aquisição precoce da Língua Gestual Portuguesa é importantíssima, sob pena de se criar aqui um atraso enorme nos primeiros anos, quando não é oferecida à criança Surda o acesso total à língua gestual. Não pode ser exclusivamente feita pelos pais, mas tem de ser feita pelos pais, rodeados de uma série de outros atores, os professores surdos, etc. Nunca foi possível uma só pessoa educar uma criança, já dizia o provérbio africano: “É preciso toda uma aldeia para educar uma criança”.
Tem de haver necessariamente uma aquisição precoce da Língua Gestual Portuguesa, porque nós, seres humanos, só somos humanos pela nossa dimensão comunicacional, só somos humanos porque comunicamos com outros humanos. Então, quando não há esta aquisição precoce, e tenho visto isto infelizmente a acontecer, em muitos casos, não há um correto desenvolvimento cognitivo, emocional e afetivo. Ao passo que, se a aquisição da Língua for natural e desde sempre estiver a acontecer no seio familiar e em todos os vários microssistemas que compõem a vida da criança, o desenvolvimento de uma criança Surda é absolutamente normal, igual a todos os seus pares. Uma criança Surda é uma criança que, fundamentalmente, nasce “estrangeira” no seu próprio país e só deixa de o ser se estiver rodeada de um núcleo de pessoas e de realidades que comunicam consigo. Então, é muito importante e este é o meu apelo enquanto mãe: independentemente da escolha que se faça a nível médico, não deixar que essa influência faça com que nos afastemos da Língua Gestual Portuguesa, o que incrivelmente ainda é um conselho. Em Portugal, ainda temos muitos médicos “presos” a este paradigma antigo que a maioria dos países europeus abandonou há décadas, de que a aprendizagem da língua gestual vai atrasar a oralidade.
A oralidade será ou não possível, e isso vai ser trabalhado paralelamente, ao longo dos anos. Contudo, a oralidade dificilmente será bem atingida se não existir uma primeira língua estruturada. Se eu não tiver os conceitos sobre hoje, ontem ou amanhã, ou quem é, o que é, se a compreensão dos conceitos não estiver muito bem integrada em mim, como vou adquirir uma segunda língua? Porque a primeira língua nativa de qualquer criança Surda é e sempre será a língua gestual. Que deixe de lhes ser negado este direito, que cada vez mais seja salvaguardado pelas suas famílias e que este caminho não se faça sozinho, porque os nossos filhos não nasceram para estar nem para aprender sozinhos. Temos de aprender juntos e o bilinguismo familiar é das coisas mais bonitas que existem. Contar histórias, enquanto lemos, falamos e fazemos gesto; cantar músicas em gesto; as nossas conversas à mesa em que a par das nossas bocas, as mãos disparam a falar. É tão bonita e tão enriquecedora esta realidade.
Os desafios continuam. Pela nossa experiência, o que nós viemos a entender, como família, é que o maior desafio de ter um filho surdo não está em educá-lo em si, mas a maior parte dos desafios encontram-se no exterior. Encontram-se, numa sociedade em que ainda existem muitas barreiras, em que ainda existem muitas costas viradas para as realidades diversas. Estes são os maiores desafios de educar uma criança Surda. São os desafios que encontramos à nossa volta e é o transpor destas barreiras que nos cabe a nós enquanto responsáveis, na maior das vontades.
Uma criança Surda, como qualquer criança, vai para a escola. A escola desempenha para a criança Surda um papel fundamental, porque é aqui que vai encontrar os seus pares, as crianças da sua idade que têm, à sua semelhança, esta questão da comunicação, esta questão de uma identidade própria distinta dos demais, professores que servem de modelos e que são importantíssimos no desenvolvimento e no crescimento das crianças. E temos realmente em Portugal uma rede de escolas de referência. A nível pessoal, na nossa experiência e no nosso caminho, encontrámos aqui várias questões e vários problemas que fomos tendo de trabalhar ao longo dos anos. O Tiago esteve em duas escolas de referência e sempre que encontrámos uma solução, voltámos a encontrar um novo desafio. Na primeira escola, a primeira solução constituiu-se, encontrámos aqui famílias, crianças, pares. Mas, de facto, deparámo-nos com questões que nos fizeram sempre querer mais e melhor. Numa primeira fase, a nossa preocupação prendeu-se com a falta de gesto em sala de aula. Numa idade muito crítica da aquisição do gesto e da comunicação, não encontrámos a melhor situação em termos de imersão linguística e de respeito pela Língua Gestual Portuguesa, o que nos fez tentar procurar respostas, querer defender direitos. Acabámos por seguir para uma segunda escola de referência, onde aí sim, tivemos a resposta a estas necessidades, em termos de evolução e de crescimento gestual, ainda numa fase muito precoce da infância, na pré-escolar. Aqui, sim, pudemos encontrar estas respostas, mas depois veio o próximo desafio, veio a questão da literacia.
É um dado que em Portugal a maioria dos nossos alunos surdos acabam a sua escolaridade com um baixo nível de literacia, em termos de leitura e de escrita. A causa deste acontecimento é atribuída às características dos alunos, mas de facto, nós sempre muito atentos, apercebemo-nos que assim não é. Este baixo nível de literacia está relacionado com a questão anteriormente falada, uma imersão linguística tardia ou inexistente na Língua Gestual Portuguesa, fazendo com que a passagem para uma segunda língua seja impossível, porque não existe uma primeira bem consolidada. E depois, tem muito, muito a ver com as práticas de ensino, com estratégias pedagógicas e metodologias de ensino. A forma como uma criança Surda aprende a ler e escrever é completamente diferente da forma como uma criança ouvinte o faz, isto é inerente e fácil de entender. E não vejo, na minha perspetiva pessoal, estes métodos assim tão bem desenvolvidos, salvaguardados, investigados e aplicados. O que fez com que novamente chegássemos a uma fase de escolha e de decisão familiar.
Voltámos a procurar e a informarmo-nos muito bem e descobrimos o ensino doméstico.
E fomos perceber o que é e como fazer. Abriu-se novamente um mundo enorme, tendo sido desde sempre a maior prioridade da minha vida, a educação de ambos os meus filhos. Olhando para o meu filho, na altura com sete anos, a fazer o seu primeiro ano e com muita vontade de aprender e muita curiosidade, um nível cognitivo e um nível linguístico incríveis e a querer aprender, a minha decisão pessoal firmou-se em dar resposta. O Tiago iniciou o seu percurso no ensino doméstico e, como alguém muito, muito especial me ensinou nesta fase da vida:
Homeschooling isn’t just about classes, Homeschooling is a way of life.
E foi realmente um modo de vida maravilhoso que se iniciou nesta fase. Tivemos de fazer grandes adaptações em termos familiares e profissionais. Eu realmente disponibilizei o meu tempo na totalidade para a educação do Tiago, a par de todas as questões inerentes a ter uma família e às necessidades desta. Comecei a estudar currículos e de que forma é que podia diferenciar estes currículos, torná-los mais significantes, aproveitar as curiosidades naturais do meu filho, as áreas em que sempre demonstrou mais aptidões. Ele sempre adorou as Ciências, descobrir o mundo, os animais, as plantas. É muito engraçado porque o Tiago também sempre teve uma curiosidade muito natural acerca da História e da Geografia, saber onde e quando foi e, portanto, começou-se de uma forma transversal, com todas as disciplinas interligadas e num nível sempre crescente de complexidade.
O Tiago acabou por fazer todo o primeiro ciclo em ensino doméstico. Felizmente, temos o privilégio de viver num sítio incrível. Vivemos na Vila de Sintra, então tivemos a melhor sala de aula do mundo para as nossas aulas. Fez-se toda uma escola em casa, uma divisão da casa com biblioteca, imensos recursos pedagógicos e educativos. E como sala de aula, também o exterior. Os nossos monumentos, as idas semanais a exposições e museus, os nossos parques e a exploração no terreno das coisas concretas, das mãos na terra. Estes foram anos muito felizes de aprendizagem, em que realmente os resultados estiveram e estão à vista. O Tiago aprendeu imenso, com um nível de satisfação incrível, sempre com a componente social também muito cuidada porque, no caso de uma criança em homeschooling, ou ensino doméstico, esta componente social tem de ser intencional, portanto, sempre proporcionando muitos encontros com os amigos, com a Comunidade Surda, com as idas à associação. Foram anos muito bonitos do crescimento do meu filho e sou muito grata em poder ter tido condições familiares, humanas e financeiras para poder acompanhar e para poder coordenar todo este processo que se tornou um modo de vida. Sobre diferenciação curricular e estratégias pedagógicas falarei em maior profundidade num capítulo próprio para o efeito, que terei muito gosto de produzir.
Esta fase da vida lembra-me sempre uma frase de Paulo Freire, sobre quão ricos são os processos de ensino quando, de facto, aprendemos ao ensinar e ensinamos ao aprender. Espelha esta reciprocidade em que o ensino doméstico me fez crescer a par do meu filho, desde o nível relacional a toda a abertura ao mundo. E foi um caminho muito bonito. Este caminho e esta experiência no ensino doméstico foi inclusive, aquilo que me fez sonhar mais alto e, do ponto de vista pessoal, motivou-me a começar a frequentar a licenciatura em Educação. Todos estes ganhos nas aprendizagens relacionados com o nosso percurso pessoal, a par do meu processo de estudo, comportaram aqui várias dimensões que me fazem hoje querer continuar a atuar na área da Educação e, em especial, na Acessibilidade e na criação de percursos significantes na Educação.
E como todos os percursos que são significantes, há sempre alturas em que, devendo monitorizar constantemente o que estamos a fazer, devemos saber observar o caminho para podermos fazer escolhas ao longo deste. Foi nessa perspetiva que, ainda durante o primeiro ciclo do Tiago em ensino doméstico, que culminou com a prestação de provas de equivalência à frequência com notas fantásticas em todas as disciplinas, um pouco antes disto, começámos a olhar para a frente e a pensar: “então, e o que se segue?”
O Tiago tinha vontade de ir para a escola. O Tiago queria manter o melhor dos dois mundos: as aulas comigo, as aprendizagens, e, também frequentar a escola. Isto denota um amadurecimento e um crescimento muito saudável. Então, vamos dar resposta a esta vontade. O Tiago nunca se definiu, apesar de ter uma identidade Surda muito, muito vincada, nunca se definiu enquanto surdo ou enquanto ouvinte. Palavras dele: “eu sou uma pessoa e não importa se sou surdo ou ouvinte!”. E como tal, quando teve vontade de reintegrar numa escola, sempre me pediu para ir para uma escola regular, normalíssima, a escola da nossa área de residência, a escola onde a irmã estuda e cresce, onde pode ter amigos, surdos ou ouvintes, não importa – Pessoas. “Quando eu voltar à escola, quero ir para esta escola aqui ao pé de casa. Mesmo que não haja lá outros meninos surdos, é isto que eu quero fazer!” E foi a este caminho que eu quis dar resposta.
Então, tendo em conta o que implica uma efetiva Inclusão e os passos concretos que a Acessibilidade requer, começámos a pensar no que fazer e, nasceu um novo projeto, giríssimo e delicioso, que foi o projeto do Clube de Língua Gestual Portuguesa. Então, dois anos antes de o Tiago ir para a escola, começámos por conseguir proporcionar que acontecesse uma formação de LGP para professores, extremamente recetivos a esta aprendizagem, o que foi algo que me confortou incrivelmente. E por outro lado, o que mais interessa em termos da Inclusão na comunidade escolar? Os alunos, os pares, os amigos. Então, iniciámos este projeto do Clube de LGP, começámos a dar aulas e o Tiago é o professor dos futuros colegas, também de forma que a escola fosse progressivamente tornando-se conhecida, os seus recantos, as pessoas, os alunos, as brincadeiras. As idas à escola começaram a fazer parte também do nosso programa semanal. Foi muito engraçado porque a recetividade dos alunos é enorme, todas as crianças e jovens aprendem Língua Gestual Portuguesa de uma maneira tão leve e inata. Foi muito bonito ver tudo isto a começar a acontecer. E desde esta altura até hoje, em que o Tiago já está no sexto ano, o Clube de LGP é um sucesso e tem imensos alunos a frequentá-lo, assim como professores e pessoal não docente. É um projeto muito bonito que trouxe um enriquecimento enorme para toda a comunidade educativa, porque isto é Acessibilidade. A Acessibilidade trabalha-se no sentido de que o que se torna acessível a um, é acessível a todos e o que se torna bom e enriquecedor para um, é um benefício para todos. Assim, contemplando toda a diversidade existente dentro de uma comunidade educativa, trabalhar para o bem de alguns será fazê-lo para o bem de todos também. Então, este projeto rapidamente começou a notar-se no ambiente escolar. Os professores que se cruzam nos intervalos e que se cumprimentam com um “bom dia” ou um “boa tarde” gestual, os alunos que nos espaços exteriores estão a treinar o alfabeto para poderem dizer algo aos colegas Surdos. Começaram a ver-se estas sementes, aqui e ali, estas manifestações de interesse e de comunicação, o que fez com que realmente, quando o Tiago foi para a escola, houvesse já todo um ambiente inclusivo. Foi muito recompensador ver esta construção a acontecer, principalmente fruto da vontade do Tiago, do investimento pessoal dele, da sua determinação quando se comprometeu “eu quero ir para esta escola, o que é que eu posso fazer para me integrar?”
Paralelamente a este projeto e ao desenho de um percurso curricular diferenciado como uma medida efetiva de qualidade e de significância das aprendizagens, a preparação prévia em termos de conhecimentos que o Tiago trazia do ensino doméstico permitiu uma integração perfeita em termos das aprendizagens em todas as disciplinas e com todos os professores. Importa aqui o papel de uma figura muito importante, a do Intérprete de Língua Gestual Portuguesa que realmente serve de veículo nas aulas entre os professores e os alunos Surdos. É uma pessoa com uma dimensão ética e afetiva também, além da profissional e tivemos muita sorte mesmo com esta pessoa. Importa lembrar que, em termos de integração emocional, no recreio não há intérpretes, nos clubes de desporto também não, não tem de haver intérprete na comunicação informal entre pares. Felizmente, pudemos ver o Tiago fazer este caminho de uma forma muito segura e não só beneficiado com estes processos de comunicação que se têm vindo progressivamente a instalar, mas porque temos a sorte de ele ter uma personalidade muito forte e confiante, com uma grande autoestima. O Tiago nunca se inibiu de chegar às pessoas por ser Surdo ou por não conseguir falar com elas, de todo. O Tiago sempre quis comunicar com todos e quando não vai de uma forma, vai de outra, mas estando lá a vontade concreta de comunicar, a comunicação dá-se. O mais belo de tudo é ver essa abertura no Tiago e vê-lo efetivamente integrado numa escola que igualmente se abriu a ele, lembrando-nos que o mesmo tinha acontecido anos antes, entre nós, família, e a Comunidade Surda. Portanto, esta reciprocidade social que se cria quando há vontades é essencial em qualquer projeto pedagógico e educativo e mesmo, é a dimensão humanista da educação.
E é realmente neste exercício coletivo de vontades, exatamente por uma escola que se quis humanista e que se abriu a mais, que atualmente está em processo a criação de uma EREBAS (Escola de Referência para o Ensino Bilingue de Alunos Surdos). Realmente, o Concelho de Sintra é um concelho tão grande e faz tanto sentido que exista um agrupamento de referência de educação bilingue, com tantos alunos surdos que aqui residem. Assim, esta escola que se quis mais, atualmente está a constituir-se como EREBAS e isto é um grande sonho tornado realidade. É realmente algo muito precioso, conseguirmos ajudar e contribuir para este impacto social que poderá ser significante para tantos alunos Surdos de várias idades, que realmente possam ter no seu concelho uma escola dedicada à educação de qualidade para todos e à diversidade cultural sustentada na solidariedade e na dignidade de todos os alunos. Uma particularidade que este agrupamento de escolas tem é uma direção aberta a todos estes valores, a par do trabalho e dedicação de todos os docentes. E existe uma figura especial em todas as histórias, não é? Nesta escola sinto e atribuo um grande mérito a uma professora de ensino especial, a professora Elisabete Machado que, de facto, foi quem articulou todo este processo de Inclusão e o tornou tão abrangente, interligando os vários atores e vontades desta comunidade. A constituição de uma EREBAS no Concelho de Sintra é realmente algo que me faz olhar para a Educação com muito gosto, com muita esperança nos valores que a representam e no seu desígnio.
E em jeitos de conclusão, todo este caminho que se tem feito e que se vai continuar a fazer, fruto de muito amor, de muita dedicação, de muita alegria, é um caminho que se fez, por um lado, com toda a naturalidade, mas por outro lado, com a superação de muitos desafios.
É um caminho que espero que todos nós, mães e pais de crianças Surdas, façamos cada vez mais juntos, com mais partilhas de ideias, de dúvidas e de anseios, mas essencialmente também com uma grande dose de criatividade e de força, porque as dimensões que se abrem são imensas e devem ser encaradas numa perspetiva positiva como toda a vida deve ser vista para realmente ser vivida. Hoje olho para o meu filho e vejo não só o resultado mensurável das notas e do seu aproveitamento escolar, mas vejo muito mais do que isso. Vejo um ser humano que me dá muito e que tem, sem dúvida alguma, muito a dar ao mundo.
Implementação de um percurso curricular diferenciado
Elisabete Machado Docente de Educação Especial dos grupos 910 (cognição e multideficiência) e 920 (surdez)
Era uma vez… uma Mãe, mãe de dois filhos, a Sarah e o Tiago. A Sarah vinha para o 5.º ano, para a escola do 2.º ciclo. Dia de apresentação na Biblioteca. Encontrámo-nos! Havia mais um filho, surdo profundo, estava em modalidade de ensino doméstico, o concelho de Sintra não tem escolas preparadas para o ensino de alunos surdos!! O Tiago gostaria de recomeçar a frequência de uma escola, quando começasse o 2.º ciclo (faltavam dois anos) … conversámos e compreendemo-nos, enviámos e-mails e conversámos de novo.
Era uma vez… uma Família, família dinâmica, ativa, preocupada e interessada na educação dos seus filhos. Já tinham criado um canal de Youtube para a divulgação e ensino da Língua Gestual Portuguesa (LGP)!! Conversámos e compreendemo-nos, refletimos formas de começar a preparar a vinda do Tiago para a nossa escola, e conversámos de novo… e as ideias a surgir e a pandemia a chegar…!
Adaptam-se as ideias, avança o Clube de Língua Gestual Portuguesa, o Tiago é o nosso professor, quer ensinar a sua Língua a todas as pessoas!! A mãe e a irmã são as intérpretes e professoras coadjuvantes. Não se pode ir à escola? Criamos o Clube através da plataforma Teams, quando pudermos, voltamos à escola. (Aqui entre nós, este Clube foi pensado para ter uma duração de seis meses e já existe há quatro anos…! E este ano, 2022/2023, já existem cinco grupos em diferentes horários.)
Pedem-se colaborações, a Associação de Famílias e Amigos dos Surdos (AFAS), por intermédio da mãe Susana, ofereceu uma ação de formação em LGP a docentes e não docentes da escola. Com a perspetiva da vinda do Tiago, muitos foram os que quiseram aprender esta Língua de forma a reduzir as dificuldades de comunicação que poderiam advir. Mais tarde oficializaram-se estas ações de formação através do Centro de Formação da Associação de Escolas de Sintra (CFAES).
Pedem-se recursos essenciais, o Intérprete de Língua Gestual Portuguesa (ILGP), elemento essencial à presença do Tiago na nossa escola, é pedido, mas não é cedido. Não somos escola de referência e só temos um aluno surdo!! Não pode ser, não podemos aceitar!! É UM, mas é aluno da área de residência do nosso agrupamento, somos ou não somos Escola Inclusiva?? O Conselho Pedagógico do Agrupamento foi sensível à situação e canalizou doze horas de crédito horário do Agrupamento para a contratação destas horas de horário de ILGP.
Avalia-se a situação… temos: doze horas de ILGP; uma professora de Educação Especial com dupla formação (grupos 910 e 920), mas que não trabalha com alunos surdos há mais de vinte anos; uma família cheia de vontade de colaborar, mas que obviamente quer a melhor educação para os seus filhos; muito “boa vontade” de ambas as partes, mas… não temos: ILGP a tempo inteiro; professor de LGP; professor de Português Língua Segunda.
Perante a proposta da escola, de implementação de um Percurso Curricular Diferenciado, elaborado com o contributo e a participação de todos, a família decide avançar para a matrícula do Tiago no 5.º ano.
Entende-se que, este Percurso Curricular Diferenciado pode, através da aplicação da diferenciação pedagógica, das acomodações curriculares, e de uma oferta curricular diversificada e adequada às necessidades específicas deste aluno, evitar dificuldades de aprendizagem e de inclusão plena na comunidade educativa.
Tenta cumprir alguns dos princípios orientadores da Educação Inclusiva, mais especificamente os princípios da Flexibilidade e da Personalização, prevê a “gestão flexível do currículo, dos espaços e dos tempos escolares, de modo que a ação educativa nos seus métodos e tempos, instrumentos e atividades, possa responder às especificidades de cada um”, para além de cumprir com um “planeamento educativo centrado no aluno, de modo que as medidas sejam decididas casuisticamente de acordo com as suas necessidades, potencialidades, interesses e preferências, através de uma abordagem multinível” (DL 54, in Princípios da Educação Inclusiva, alíneas e) e d) respetivamente). Cumpre ainda o conceito entendido como Percurso Curricular Diferenciado no DL 54/2018, uma vez que se materializa numa “oferta que a escola disponibiliza, de forma a promover a equidade e a igualdade de oportunidades na resposta às necessidades educativas de cada aluno, ao longo da escolaridade obrigatória.”
Avança-se com a seguinte organização para um primeiro ano do Tiago na escola: a primeira Língua do aluno, a LGP, é desenvolvida por formador da comunidade surda em contexto extraescolar; o Inglês, que surge no ensino bilingue como Língua 3, sendo normalmente parte da matriz curricular apenas no 3.º ciclo, integra-se no currículo do 2.º ciclo, em substituição da Educação Musical, por ser de maior utilidade ao aluno, dado o seu perfil de funcionalidade; as disciplinas para as quais não existem horas de ILGP, são frequentadas em regime de Trabalho Autónomo, através de uma parceria entre a Encarregada de Educação do aluno e o(a) professor(a) titular da disciplina; a Encarregada de Educação faz o acompanhamento e orientação do seu educando, na aprendizagem dos conteúdos previamente acordados com o(a) professor(a) titular de cada uma destas disciplinas; a avaliação das mesmas será concretizada da forma acordada entre os parceiros, podendo ser feita de forma presencial, ou através de trabalho autónomo por metodologia de portefólio, por exemplo; o espaço em que a lecionação destas disciplinas decorre será adequado à situação específica, podendo ocorrer no domicílio do aluno.
Cresce-se… e vai-se continuando a crescer… a comunidade educativa demonstrou vontade de aprender e tentámos corresponder… de novo, a Escola e a Família, parceiros e aliados no longo caminho a percorrer!! No entanto, quando olhamos para trás, já vemos algum caminho percorrido: ações de formação em LGP; formação relativa à surdez, ministrada ao pessoal não docente por docentes de Educação Especial; vídeo sobre Surdez elaborado por docentes de Educação Especial e passado nas aulas de Cidadania de todas as turmas da escola; atividades de várias turmas incluídas no Projeto Cultural de Escola tais como, declamação de poesia em LGP, canções com interpretação em LGP; testemunho do Tiago e da sua família sobre algumas das especificidades que a surdez trouxe às suas vidas.
Descobre-se… que a LGP ajuda os alunos com Dislexia a melhorar a sua ortografia!!… que a LGP funciona como ponte entre os alunos portugueses do Clube de LGP e os alunos falantes de outras línguas… que a aluna refugiada da guerra da Ucrânia sentiu conforto em ficar na turma do Tiago, turma onde os alunos usavam mais o gesto para falar e comunicar entre eles!!
Percorre-se… um caminho que não tem fim, cujo objetivo é o percurso em si mesmo, é continuar a percorrer o caminho adaptando, adequando, revolucionando tudo o que for necessário de modo a permitir o sucesso educativo de cada aluno, sorvendo toda a riqueza com que cada um deles, cada família, na sua especificidade, nos presenteia.
Espera-se… que o sistema educativo, nos permita dar a melhor resposta às necessidades de cada um dos nossos alunos. Tal como o percurso, a resposta às necessidades deve ser dada a cada momento. Nesta situação específica aqui partilhada, a resposta tem vindo a ser construída, ano a ano, mas a escassez de recursos humanos atribuídos condiciona a qualidade do trabalho realizado. Este tem sido um dos maiores obstáculos a ultrapassar…
Continua-se… juntos, de novo, a Escola e a Família, a lutar contra os obstáculos, a pedir recursos, a escrever e-mails… mas, principalmente, a conversar, a compreender, a sentir, a dar e a receber… tanto, tanto.