Capítulo 6 – O ensino doméstico de um aluno Surdo

Autor: Susana Maurício

Palavras-chave: ensino doméstico, surdez, criatividade

Citação: Maurício, S. (2023). O ensino doméstico de um aluno surdo. In M. Francisco, C. Tomás & S. Malheiro (Orgs.). 12 histórias educacionais: Ser diferente na diversidade. Práticas pedagógicas em contextos pouco visíveis. [Online]. LEAD, Universidade Aberta.

A Educação é um ato de amor e de coragem. Quem ensina, aprende ao ensinar. E quem aprende, ensina ao aprender.

Paulo Freire

Resumo

O ensino doméstico (do inglês homeschooling) refere-se a uma via educacional desenvolvida no domicílio do aluno, por escolha familiar. A responsabilidade pedagógica pela estruturação e desenvolvimento deste processo de aprendizagem é atribuída à família, por norma a um dos pais da criança. Esta via educativa extraescolar garante a liberdade de escolha das famílias quanto à qualidade do ensino e de todas as estratégias e metodologias inerentes à sua construção, no sentido da sua significância, tendo em consideração uma alternativa à massificação escolar e às suas práticas. Exige um total compromisso e uma dedicação constante quanto ao desenvolvimento das competências cognitivas, sócio-afetivas e psicomotoras do aluno e é um processo muito profundo e gratificante, vivido em família. Este capítulo pretende-se um roteiro simples e abrangente do desenvolvimento do percurso educativo em ensino doméstico ao longo do 1º ciclo de escolaridade do meu filho Tiago, Surdo, cuja língua materna é a Língua Gestual Portuguesa (LGP).

O ensino doméstico

O ensino doméstico (ED), regulamentado em Portugal pelo Decreto-Lei N.º 70/2021, constitui uma via educativa válida e estruturada que visa dar resposta ao desenvolvimento do processo educativo do aluno fora do contexto escolar, em estreita conformidade com os princípios, valores e áreas de competência do Perfil dos Alunos à Saída da Escolaridade Obrigatória. Este processo, em que a família pretende assumir uma maior responsabilidade na educação dos seus filhos, representa uma garantia da liberdade de escolha dos pais e dos alunos, adequando-se a uma maior flexibilidade do ensino, bem como ao ritmo de desenvolvimento das aprendizagens e sua significância. Desta forma, o percurso formativo decorre no domicílio do aluno e é desenvolvido por um familiar, normalmente os pais, que se responsabilizam pelo ensino tendo como referência as aprendizagens essenciais associadas ao ciclo de escolaridade do seu filho. No final do ciclo que frequentam, os alunos de ensino doméstico prestam provas de equivalência à frequência no estabelecimento de ensino em que estejam inscritos para o efeito, no sentido da avaliação e certificação formal das aprendizagens.

Atualmente, o ED corresponde a um amplo e crescente movimento social de famílias que veem a educação dos filhos como um direito seu, e não simplesmente como um dever a cumprir. As justificações familiares sobre esta escolha são múltiplas, desde a itinerância ou mobilidade das famílias, às características individuais dos alunos, que nem sempre têm o que os pais consideram ser as melhores respostas no contexto da educação escolar. A grande maioria das famílias que optam por domiciliar o ensino dos seus filhos sentem a necessidade de salvaguardar os direitos destes no acesso a uma educação de qualidade, através de caminhos que não são lineares, mas pautados por todo um conjunto de fatores que tornam cada processo de aprendizagem único, singular. Por vezes, há famílias que discordam com o desenvolvimento curricular das escolas públicas, outras vezes, simplesmente sentem que devem dedicar-se elas mesmas à vivência deste processo de desenvolvimento pessoal, do crescimento dos seus. Essencialmente, para refletirmos sobre o ensino doméstico, não devemos partir de juízos de valores formulados em perspetivas antagónicas, ou seja, o que é que está errado numa ou noutra modalidade de ensino, regular ou doméstica. Podemos sim, observar no seu crescente a mudança da sociedade e dos seus paradigmas, da multiplicidade de escolhas e da heterogeneidade de seres humanos que a habitam e, neste olhar, contemplar o retorno de uma prática tão antiga como a Educação em si mesma, permeada por todas as novidades contemporâneas.

O porquê desta escolha familiar

Quando o Tiago frequentava o 1.º ano, ele próprio se mostrou insatisfeito com a realidade que vivia na escola. Queria aprender mais, queria aprender melhor. De facto, se não existem processos de aprendizagem lineares e se a homogeneização destes processos não atende na íntegra as necessidades individuais de todos e de cada um dos alunos, no caso dos alunos Surdos esta questão vê-se acentuada por vários fatores.

O desenvolvimento linguístico das crianças Surdas da mesma idade não está de todo nivelado, sendo que a grande maioria destas crianças inicia o 1.º ciclo com dificuldades de compreensão e produção linguísticas causadas por uma aquisição tardia e/ou insuficiente da LGP. Com esta falta de imersão linguística, existem questões que, se na fase pré-escolar podem ainda estar latentes e não fazer anunciar os seus efeitos de forma tão perentória, chegados ao 1.º ciclo estas consequências começam a notar-se de forma mais óbvia. E notam-se não só na capacidade de aprender, mas também em termos de socialização entre pares.

Além de querer aprender mais e melhor, o Tiago queria brincar na escola à semelhança do que acontecia em casa com a irmã, imaginando, fazendo de conta, realizando no fundo aquele role-playing que as crianças conseguem fazer de forma tão inata e que tanto permite crescer e aprender enquanto brincam. No fundo, o que o Tiago sentia falta era de, nas brincadeiras escolares ver incluída a oportunidade de experimentar e afirmar os seus conceitos subjetivos e conhecer os dos outros colegas. Novamente, conceitos subjetivos desenvolvem-se com base numa estruturação linguística correta e ampla que permita um desenvolvimento cognitivo saudável, algo que não é assim tão garantido à maioria das crianças Surdas e com sorte, mais tarde se vem a desenvolver, mesmo que “fora do tempo certo”. Esta não é uma questão das crianças, mas reflete-se diretamente nelas. É uma demonstração do que a falta de domínio da LGP pela maioria dos educadores e professores de Surdos provoca. E mais que tudo, as famílias, sendo no seu seio que se desenvolvem as primeiras aprendizagens e um precioso papel de vinculação que se fará sentir para o resto das suas vidas.

A importância fulcral de as famílias aprenderem LGP desde o início, desde a “descoberta”, recai na forma como os seus filhos irão aprender a comunicar-se, mas também na forma como os pais irão saber exigir uma comunicação de qualidade na escola. A realidade da maioria destas famílias não é fácil, existem poucas escolas de referência para alunos Surdos e há crianças e jovens que todos os dias fazem longas viagens em transportes escolares. Os pais têm muita esperança de que todo este esforço produza os seus efeitos, mas com o passar dos anos vêm poucos “resultados” ao nível da leitura e da escrita e, se não dominarem a LGP, nem chegarão a poder atestar se existem resultados sobre os outros domínios das aprendizagens. Só podem, portanto, acreditar na escola e por norma, os discursos apontam para a falta de capacidade dos alunos para aprender, mas nunca para a falta de capacidade dos professores para ensinar ou para a sua falta de proficiência linguística.

No nosso caso, os motivos desta escolha foram indiciados pelo Tiago, e após muita reflexão nossa, deu-se início a todo um processo de reorganização profissional e pessoal no sentido de poder proporcionar-lhe a educação que lhe achámos merecida.

Desenvolvimento do Percurso

A escolha pelo ensino doméstico não é, nem deve ser feita de ânimo leve. No sentido de oferecer aos nossos filhos um ED de qualidade e conseguir mantê-lo, existem várias questões a refletir além das pedagógicas, como é o caso da socialização. Esta é uma componente essencial do desenvolvimento saudável da criança e tem de ser tratada com toda a consciência de tal, permitindo que as relações interpessoais contribuam devidamente para um progressivo ganho da autorregulação, decisiva na capacidade da criança aprender a gerir os seus próprios pensamentos e emoções, assim como a forma como age no mundo.

Contudo, partir do pressuposto que a socialização das crianças só acontece na escola parece-me tão estranho como supor que todas as crianças que estão na escola se sentem bem-adaptadas e se não estão têm algum problema. A socialização abrangente acontece na comunidade, nos passeios, nos encontros, em todos os atos naturais ou provocados em que nos relacionamos com quem está à nossa volta, o que deixa adivinhar os efeitos positivos de uma socialização bem cuidada ao longo do ED, muito menos limitada em tempo, espaço e personagens que a criança não escolheu, mas aberta ao mundo e aos seus próprios interesses.

Por outro lado, embora a grande maioria dos pais que desenvolvem um processo de ED com os seus filhos não tenha estudado para ser professor, o facto de lhes oferecerem uma presença e disponibilidade consistentes, com respostas adequadas às suas necessidades e interesses, permite às crianças sentirem-se seguras e valorizadas, num ambiente feliz e rico em experiências significantes. Volto a dizer, quem envereda por este caminho não tem uma vida mais fácil. Não sei se quando se imagina o dia-a-dia de uma família em ED surgem apenas imagens idílicas de piqueniques no campo e de pinturas em papel de cenário. A questão é, sim, há imensos piqueniques, passeios, quadros, telas, papéis, pincéis, folhas e flores, felizmente! Há também muito planeamento, muitas horas passadas em pesquisa e a criar materiais e recursos pedagógicos, muitos desafios pelo caminho, muita dedicação encaminhada para quem é mais importante para nós.

E é em prol da liberdade pedagógica, em prol da significância de métodos e de conceitos, que devemos construir ano a ano, o percurso de ED. Sabemos que nas escolas a classificação da educação em dados mensuráveis nem sempre vai ao encontro do sucesso da aprendizagem, mas sim de uma forma de a validar formalmente, de a comprovar. Nesta perspetiva, aprender para o teste e depois esquecer é a forma mais corrente de pensar dos nossos alunos. Ano após ano, aprofundam-se os mesmos temas e é como se fossem novos, porque já nos esquecemos. Quanto do que aprendemos na escola fica de facto enraizado como “saber” e se torna operacionalizável com outros saberes? Quanto do que aprendemos deu realmente gosto, prazer a aprender e se tornou um conhecimento trabalhado com capacidade crítica e com tempo para praticá-la? Muito pouco. Vivemos na época dos horários, das avaliações, das corridas do currículo, do consumo rápido da informação e do esquecimento, sem tempo para questionar, o que vai fazendo também desaparecer a vontade.

Por todos estes motivos, um grande objetivo no planeamento deste percurso educativo foi ultrapassar a tendência da utilidade imediata do conhecimento, preservando a aprendizagem de longo termo, as questões de resposta aberta que levam à reflexão, apoiando a descoberta e a manutenção dos temas num carácter de transversalidade interdisciplinar e de emprego em contextos práticos e reais. O desenvolvimento da metacognição foi um processo intencional, em que aprender a aprender constituiu a base para que os recursos internos que se foram criando pudessem realmente relacionar-se com os objetos externos da aprendizagem.

A par de todo este processo complexo, o desenvolvimento de uma segunda língua, o português escrito e lido, foi realizado de base e com muito sucesso, com métodos e estratégias próprios. Para uma criança surda, só é possível estabelecer este processo de forma duradoura se, de facto, a consciência de um uso metacognitivo das aprendizagens for cumprida de forma permanente, permitindo um desenvolvimento progressivo e enraizado de uma língua que não se ouve, mas que se vê. A LGP foi claramente a língua de veículo de todas as disciplinas, não sendo o português uma exceção, o que permitiu o entendimento amplo dos conceitos e a satisfação de aprofundar sem limites os seus sentidos.

Estratégias pedagógicas para as várias disciplinas

Tendo em vista proporcionar um caminho diversificado e exploratório de vários interesses e áreas disciplinares, o desenho curricular inerente ao processo de aprendizagem do Tiago foi criado com um conjunto de disciplinas, numa organização distinta da que é implementada em contexto escolar. As aprendizagens essenciais e competências adquiridas pelo Tiago nos domínios das diversas disciplinas que compuseram o nosso plano curricular foram desenvolvidas em consonância com as respetivas áreas de competências definidas no Perfil dos Alunos à Saída da Escolaridade Obrigatória, num contexto bilingue – a LGP como primeira língua e o português escrito e lido como segunda língua. Assim, foi criado um conjunto de disciplinas que passo a descrever.

Português

A aprendizagem da Língua Portuguesa para uma criança Surda requer, naturalmente, métodos e estratégias completamente distintas das utilizadas para crianças ouvintes. Na escola, a disciplina chama-se Português Língua Segunda (PL2) e tem um currículo próprio. A meu ver, o contacto e aprendizagem de uma língua deve ter um carácter contínuo e a disciplina tem de ter uma regularidade diária e a nós, demorava nunca menos de duas horas, com pausas. Algumas das práticas podem ser comuns às utilizadas para o ensino do Português – língua não materna, mas ainda assim a melhor solução é criar de raiz um plano que implique a mobilização de vários fatores e competências articulados entre si. Uma boa aquisição da leitura e da escrita é possível, conforme o Tiago conseguiu fazê-lo, se tivermos em conta que é obrigatório que a criança tenha um bom domínio da sua primeira língua – a LGP – e que o professor tem proficiência linguística nesta língua para ensinar diretamente.

Em primeira análise, ao nível do vocabulário, uma criança ouvinte consegue passar à escrita as palavras que ouve desde sempre com uma naturalidade que à criança Surda não é possível. A criança Surda tem de, obrigatoriamente, memorizar todas as palavras que aprende e manter um contacto repetido com elas até as integrar por completo. Acontece mais rapidamente com a leitura, ao nível do reconhecimento, do que com a escrita, ao nível da produção, constituindo processos mentais distintos. A própria forma como uma criança Surda utiliza a memória é muito diferente. Então, durante anos, para a aprendizagem do vocabulário, as nossas aulas de português começavam com as “palavrinhas”. As palavras eram organizadas em duas listas, leitura e escrita. Nestas listas, as linhas de vocabulário estavam organizadas por cores. Estas cores funcionavam como um código para um trabalho muito metódico, em que se apontavam todas as palavras conhecidas pelo Tiago e a quantidade de vezes que as lia e escrevia com sucesso, ou não, eram apontadas. A progressão das palavras pelas várias cores corresponde pois, a um código assente numa metodologia de trabalho aplicada ao vocabulário adquirido. Diariamente, o Tiago escrevia todo o vocabulário presente numa lista, pedido a ditado, e lia todo o vocabulário da outra. As palavras novas devem ser primeiro introduzidas no contexto de frases e textos e o mais possível associadas a imagens, para plena compreensão dos conceitos e sua aplicação, ao que depois são introduzidas na lista de ler. Posteriormente, vão passar para a lista de escrever onde inicialmente são repetidas diariamente e à medida que vão sendo bem escritas progridem para as outras cores, cada vez com maior espaçamento entre escritas. Quando na penúltima fase de progressão, as palavras só aparecem listadas de mês a mês, depois de dois em dois meses, estando nesta fase já completamente integradas pelo aluno, pelo que já não são esquecidas. Claramente, continuam a ser aplicadas em leitura e escrita nos mais diversos contextos, em frases, textos e histórias. As que voltam a mostrar sinais de esquecimento, voltam a fazer o mesmo caminho anterior. Esta metodologia permite relembrar e treinar profundamente todo o vocabulário aprendido, para que a sua perceção não seja momentânea e rapidamente esquecida. Assim, todo o vocabulário aprendido pelo Tiago até hoje está bem integrado e é funcional. Normalmente a lista de vocabulário é superior na leitura, sendo que a escrita é alvo de um trabalho mais detalhado, através da escrita da palavra, frases, divisão silábica, associação do artigo (feminino/masculino) adequado, singulares e plurais e todos os aspetos inerentes à sua utilização correta, incluindo a polissemia. As palavras são separadas na lista por classes gramaticais: substantivos, adjetivos, advérbios e verbos.

Outra estratégia que foi fundamental e desenvolvida ao longo dos vários anos foi a atribuição de uma figura geométrica e respetiva cor a cada classe de palavras. Por exemplo, os nomes são triângulos pretos e os verbos são círculos vermelhos. Foi sob este código que trabalhámos a observação da estrutura frásica e a sua correta construção, chamando a atenção para todos os seus componentes. É mais simples para uma criança Surda lembrar que falta numa frase um “triângulo azul” do que um determinado artigo definido ou indefinido, que não se usa em LGP. Ou seja, esta simbólica visual permite dar valor às distintas classes gramaticais e aplicar o seu uso. Quando se ensina uma palavra nova, podemos pensar se é vermelha (um verbo) ou roxa (um adjetivo), como e quando se usam corretamente. Progressivamente, figuras passam só a cores e as cores passam a frases monocromáticas onde o aluno já distingue o papel de cada palavra. A nomenclatura formal só acontece depois. Importa ainda referir que a escrita diária de frases é essencial, por cópia, ditado, como resposta a exercícios de compreensão da leitura, composição ou noutro qualquer contexto.

Existem muitas outras estratégias específicas que poderiam ser descritas, mas tentando criar mais traços gerais do que detalhar de forma tão intensa, o que gostava de realçar é a importância visual da língua. Para a criança surda, o que é memorizado é a grafia, e nunca o som. O treino da ordem alfabética, a associação máxima de imagens, a criação de um dicionário ilustrado pelo aluno, o treino da caligrafia que em simultâneo provoca a escrita calma e atenta, são estratégias fundamentais. Dar cores distintas às vogais e às consoantes faz entender que são de “famílias” diferentes e “sem querer” é meio caminho andado para as memorizar. Por exemplo, ao saber que “cão” se escreve – azul, vermelho, vermelho – a memória é exercitada de uma forma muito mais focada e novamente, visual. Escrever a palavra com sílabas diferentes em falta para completar, em frases de leitura; palavras cruzadas; trocar as sílabas e perguntar o que é; jogo da forca com um tema; escrever recados; manter um diário gráfico com apontamentos; etc.

Durante muitos anos, tivemos por toda a casa centenas de etiquetas com os nomes de tudo. A cama, a janela, a porta, a máquina do café, a mesa, a cadeira, tudo o que se possa imaginar. Ainda hoje encontro etiquetas aqui e ali. Fizemos muitas vezes o jogo de encontrar os objetos. Dando-lhe uma lista de palavras, o Tiago tinha de encontrar o objeto e desenhá-lo, sem fazer ideia de que estava a aprender a palavra de cada vez que olhava para ela. A criatividade é infinita, pelo que seguindo os princípios de uma aprendizagem visual, em termos de estratégias as hipóteses são imensas.

Literatura

O nível de desenvolvimento da leitura de uma criança Surda no 1.º ciclo normalmente não está ainda nivelado com o seu nível cognitivo. A criança sabe e interessa-se por muito mais do que aquilo que consegue ler com total autonomia. Assim sendo, contar histórias, curtas ou longas, deve ser um exercício preferido à tentativa de fazer a criança ler algo que ainda não consegue. Esta disciplina teve vários objetivos no seu desenvolvimento: dar acesso a literatura adequada ao nível de desenvolvimento cognitivo do Tiago; desenvolver a memorização e compreensão de relatos de extensão variada; promover a compreensão e análise de histórias e textos de tipos variados, adequados à sua idade/desenvolvimento; explorar a educação literária; introduzir  conceitos literários e estilos, tipos de texto, etc. (narrador, personificação, fábula, …); descobrir e sentir que os livros são bons e é bom explorar livros, sentir a magia de ler.

A narração feita a seguir à leitura em LGP é uma medida mais clara da compreensão e análise superior do aluno, mais do que uma pergunta direta, pois levou o Tiago a digerir a informação, perceber o que é relevante, ordenar para si e decidir como o vai explicar de forma que o outro o entenda. Dizem que só sabemos bem uma coisa quando somos capazes de a ensinar a outro, assim, o reconto das histórias prova que foram interiorizadas e em que grau de pormenorização. Por norma a literatura acedida nesta disciplina, podendo ou não fazer parte do plano nacional de leitura, é contada em LGP, ao que posteriormente o aluno trabalha o reconto. No caso das histórias curtas e textos, o reconto é feito de forma imediata, trabalhando os aspetos da compreensão, análise e memorização curta. Por outro lado, nas obras literárias de vários capítulos que demoram mais de uma semana a contar, o reconto só é pedido algum tempo depois, cerca de um mês após a conclusão da leitura, trabalhando assim os aspetos da integração da história na imaginação permanente, a memorização a médio e longo prazo dos detalhes e a forma personalizada de recontar o conteúdo recorrendo à organização da informação e construindo a sua forma própria de a expressar. Este é um exercício da maior utilidade para a apreensão de todo o tipo de informações e saberes. Por vezes, as leituras foram também exploradas de outras formas, fazendo as partes da história em ilustração ou em esquema, dramatizando, criando um fim diferente ou recontando da perspetiva de um personagem diferente, partir dela para discussões sobre a vida real, filosofia ou o que se quiser. Esta disciplina garantiu-nos momentos muito bem passados em bancos de jardins, à sombra de grandes árvores ou no calor das mantas e do sofá.

Inglês

Para o Inglês, deixo apenas uma pequena nota. No currículo dos alunos Surdos, a aprendizagem desta língua, a sua terceira, só se inicia no 7.º ano, à semelhança dos seus pares ouvintes quando escolhem aprender a L3, normalmente entre o Espanhol, o Francês e o Alemão. De qualquer forma, dado o excelente domínio do Tiago em LGP (L1) ter facilitado o bom desenvolvimento da aprendizagem do Português (L2), quando ele demonstrou interesse em aprender Inglês, não vi porque não o fazer. Assim, o Tiago começou a aprender Inglês no 3.º ano e a facilidade com que tem continuado esta aprendizagem deixa-me muito orgulhosa. O Inglês é, de facto, mais simples de aprender pelos alunos surdos, quando comparado ao Português, quer pela sua estrutura frásica, quer pelos termos gramaticais por terem menos flexões (verbais, adjetivais, etc.).

Quando numa fase já mais consolidada, e se for do seu interesse, a criança Surda consegue aprender muito vocabulário por si mesma, em vídeos, jogos e outros contextos informais. A forma como os manuais de Inglês estão organizados é muito facilitadora, pelo uso de muitas imagens e exercícios de relação, pelo que poderiam servir de inspiração ao desenvolvimento de manuais de PL2. Em ciclos posteriores de estudo, a única salvaguarda que faço relativamente ao ensino das línguas é quanto ao nível de proficiência dos professores em LGP, porque o ensino de uma língua mediada por um intérprete não resulta, uma vez que o aluno só vê o gesto e quem o está a fazer não é responsável por acionar as estratégias, mas sim uma ponte. No ensino das línguas não pode haver pontes, de resto, recomendo que em existindo condições, a aprendizagem do Inglês se inicie o mais precocemente possível.

Matemática

A Matemática é uma disciplina fundamental e muito prática, em que os principais suportes utilizados foram sempre, a par dos manuais, os materiais manipuláveis e o nosso quadro branco, que tantos e tantos exercícios viu acontecer. Recorremos também a muitos jogos e aplicações concretas do raciocínio das matérias nas situações reais das rotinas e do mundo. Ir às compras, ver se o dinheiro chega, pagar e receber o troco. Perceber se um dado objeto cabe num dado lugar, quantas laranjas vamos precisar para fazer o sumo para todos os amigos que vieram lanchar, são sentidos muito práticos da aplicação da Matemática que têm um significado concreto, real. Conforme o currículo, o nosso plano de aprendizagens da disciplina estava dividido nas áreas Números e Operações; Geometria e Medida; Organização e Tratamento de Dados; e, Resolução de problemas, Raciocínio e Comunicação.

Por norma, as crianças Surdas têm um bom raciocínio matemático, preferindo naturalmente esta disciplina às letras. Como são muito visuais, também têm facilidade na Geometria e na visualização espacial. Por outro lado, uma das suas maiores dificuldades pode estar na interpretação de enunciados através da leitura para a resolução de problemas. No sentido de superar esta possível dificuldade, os problemas têm de ser devidamente explicados em LGP por quem ensina, uma vez que não podemos fazer depender o desenvolvimento das competências matemáticas do nível de literacia em que a criança se encontra. Esta conceção serve para qualquer disciplina, em que os elementos de aprendizagem e de avaliação devem ser adaptados de forma equitativa ao nível de desenvolvimento da literacia no momento. Por exemplo, um aluno surdo com pouco domínio da produção escrita não pode ser prejudicado num teste de ciências ou de história, por não saber escrever as palavras, ou ver a sua nota descontada por não ter escrito corretamente. Então, quanto aos problemas matemáticos, o enunciado é devidamente explicado pelo professor que domina corretamente a LGP e é feita a leitura acompanhada do mesmo, ensinando a retirarem-se as informações essenciais à sua resolução. A repetição deste processo resultará no ganho da autonomia do aluno que será cada vez mais capaz de o fazer por si mesmo, ganhando cada vez mais confiança. É igualmente importante ter em conta uma complexidade progressiva dos enunciados, começando por textos muito curtos e com uma linguagem muito simples e aumentando o grau de dificuldade em consonância com o que sabemos que a criança é capaz de fazer, provocando uma integração que mais vale ser lenta do que produzir repetitivas frustrações que não têm a ver com a matemática em si. A tradução do enunciado para desenho e símbolos visuais é também muito útil. E à medida que o aluno vai desenvolvendo o seu nível de leitura, a compreensão e resolução de problemas é cada vez mais bem conseguida. Não vale a pena explicar da mesma maneira o que não se entendeu e as conquistas devem ser todas celebradas.

Ciências (Geral, Animais, Plantas e Experiências)

Ciências e as suas experiências sempre foram a área de predileção do Tiago. A divisão da disciplina nas quatro componentes – Geral, Animais, Plantas e Experiências – permitiu, além de explorar os temas curriculares previstos ao nível do 1.º ciclo, aprofundar muito mais o estudo de animais e plantas, em teoria e no terreno.

Quanto aos temas curriculares ditos gerais, a utilização de posters, livros alternativos aos escolares e pesquisa na internet são recursos muito úteis. Desde o corpo humano ao sistema solar e ao ciclo da água, há que ter em conta também a quantidade imensa de vocabulário associado que a criança tem de aprender. No caso de uma criança Surda, que não ouve estas palavras e que não as encontra visualmente no dia a dia, pela sua especificidade, é necessário criar jogos de palavras, com cartões e imagens, mapas mentais, desenhos e esquemas que vão ficando expostos pelas paredes, de forma que progressivamente este vocabulário seja reconhecido e depois produzido de forma autossuficiente e claro, devidamente integrado à compreensão conceptual. A associação gesto – palavra – imagem tem de estar sempre muito clarificada e usada de forma recorrente.

A abordagem ao estudo dos animais foi feita de forma sazonal, em formato projeto. Em cada estação do ano foram escolhidos pelo Tiago um conjunto de animais, por exemplo, na primavera as aves migratórias, no verão os peixes marítimos, no outono os animais de floresta como as raposas e os lobos, no inverno os ursos polares ou os animais que hibernam. O formato de projeto promove a oportunidade de se estudarem múltiplos aspetos do mesmo tema ao longo do tempo. No caso dos animais, é estudada a sua classificação como invertebrados e vertebrados, as características morfológicas, a reprodução – ovíparos e vivíparos, a deslocação, a alimentação – herbívoros, carnívoros, omnívoros, os habitats, a distribuição geográfica, os comportamentos, a adaptação ao clima – luz, água, temperatura, solo, os problemas ambientais e estado de conservação da espécie e as cadeias alimentares. Esta estratégia permite integrar todos estes conceitos curriculares de forma mais significante, ao serem enquadrados em animais específicos e com o tempo, comparados com os dados recolhidos e com as aprendizagens realizadas em cada projeto sazonal. Desta forma, o conhecimento permanece, não é consumido e esquecido. O Tiago mobiliza conhecimentos muito pormenorizados sobre muitas espécies de animais porque tomou as decisões sobre o que queria aprender, teve tempo para os estudar e para desfrutar das descobertas que foi realizando.

Foi utilizada a mesma abordagem em relação ao estudo das plantas. Escolhendo-se um conjunto de espécies por estação do ano, entre herbáceas, arbustos e árvores e decompondo o seu estudo em várias componentes e aspetos. Trabalhos visuais e práticos são muito importantes, como a construção de um pequeno herbário, o desenho à vista e o reconhecimento de espécies nos jardins e na serra, tornando-se uma brincadeira familiar de grande utilidade pedagógica, levando também o olhar além da dimensão científica, ao sagrado que habita em todas as espécies vegetais.

Por fim, quanto às experiências, acho que todas as crianças têm um cientista em si. As experiências não são para ser observadas, como muitas vezes acontece numa escola, pela dimensão das turmas e escassez de recursos suficientes para todos. As experiências são para ser vividas e as crianças devem fazer parte de todo o processo. Desde a apresentação da ideia, a criança participa ativamente na preparação dos materiais, na montagem, na execução, no registo dos dados e na responsabilização pela limpeza e arrumação dos materiais. É uma hora lúdica, pelo que se não se souber escrever as palavras, apontam-se as conclusões em desenho e o resto fica para a aula de português. O ED tem tempo para tudo e o importante aqui é a compreensão, a manipulação e a satisfação de fazer acontecer.

Geografia (Geral, Portugal, Mundial e Mapas)

A disciplina de Geografia foi também dividida em áreas temáticas: Geral, Portugal, Mundial e Mapas. Em cada uma destas áreas foi feito um trabalho articulado e interativo, por exemplo, na Geografia de Portugal, ao estudar cada região, são abordados os conteúdos programáticos da disciplina geral, tais como as atividades e as construções do meio, o estudo do relevo e dos principais rios, etc. Eleger uma região e estudá-la durante algum tempo permite aprofundar as pesquisas e conhecer aspetos culturais como os contos populares e o folclore que lhe são característicos.

Em Geografia Mundial, além do estudo que se iniciou pelos países da União Europeia, foram estudados países que vinham ao conhecimento através das outras disciplinas. Por exemplo, ao estudar sobre um artista em Artes, estudámos sobre o seu país de origem. Ao estudar uma cultura antiga em História Mundial, observámos os atuais países onde essa cultura se fixou e a extensão dos impérios de várias civilizações. Cidadania é igualmente uma disciplina que desperta para a pesquisa de países e suas culturas em várias áreas de estudo. O estudo sobre cada país debruça-se sobre aspetos como: bandeira, localização, clima, paisagem, relevo, características culturais e sociais, densidade populacional/área, línguas oficiais, capital e aspetos específicos de cada país.

O trabalho feito no tema Mapas foi o de sintetizar os conhecimentos de localização e relação com as bandeiras, localização de rios, conceitos como União Europeia, ONU, ou grupos de países como o Reino Unido ou a Escandinávia. De uma forma operativa, desenhar contornos de países em papel vegetal e colecioná-los num suporte adequado, permite à criança uma relação com a aprendizagem que fará com que esta se torne em conhecimento permanente e manipulável. Mais do que saber o nome dos países lusófonos, queremos compreender o que são e onde são, como vivem os seus habitantes, quais as suas características. Mais do que entender que existem movimentos de emigração e imigração, importa perceber quais são, para onde vêm as pessoas, para onde vão. Até a nível político, introduzindo noções basilares de quais são as principais políticas mundiais e as suas implicações sociais, deve-se preparar o terreno onde irão germinar a capacidade de análise de todas as questões mais complexas que caracterizam a história da humanidade e a sociedade atual. Em suma, além dos conteúdos programáticos previstos, esta foi mais uma disciplina desenvolvida de uma forma holística e bastante transversal às outras áreas do conhecimento.

História

A disciplina de História esteve, para nós, naturalmente dividida em História de Portugal e História Mundial. A par destas categorias, existem conteúdos programáticos de carácter geral como a evolução dos meios de transporte e a evolução dos meios de comunicação que foram dados nesta disciplina, mas dada a especificidade dos conteúdos a aprender estarem todos no âmbito da História de Portugal e da História Mundial, estas foram as categorias que fizeram sentido no nosso programa, no intuito de seguir a estratégia de aprofundar temas de interesse naturais do Tiago.

Em História Mundial aprendemos sobre diversas civilizações, tais como a Suméria, a Babilónia, onde era a Mesopotâmia, qual foi o papel dos rios Tigre e Eufrates no desenvolvimento do berço da humanidade, o Crescente Fértil, a cronologia, as suas principais características, temas basilares como a invenção da escrita e da roda. A noção da passagem da Pré-História para a História. No estudo de cada civilização e culturas antigas, como o Antigo Egito, a Roma e a Grécia Antigas, a cultura Celta, deu-se primazia aos seus contextos históricos, culturais, religiosos e geográficos. Estes foram temas amplamente estudados e apreciados pelo Tiago, que adora esta componente mundial da disciplina.

Uma estratégia muito importante foi desde logo, construir numa das paredes da casa uma linha cronológica, em sete longos frisos de cartolina plastificada, do teto ao chão. Depois de realizar este trabalho com o Tiago, entusiasmado com a conceção e instalação, começámos por colocar as datas importantes sobre a sua história pessoal, como a sua data de nascimento e acontecimentos familiares importantes. Este friso cronológico foi um recurso essencial para a perceção progressiva da noção temporal. Não basta dizer, quando falamos de dinossauros, que se extinguiram há cerca de 65 milhões de anos. É um número demasiado vasto para ser compreendido sem apoio visual. Decorar datas não é o mesmo que compreendê-las. Mesmo a noção de séculos, a noção de que algo aconteceu no século tal, ou há quinhentos anos, por exemplo. Assim, à medida que aprendia sobre a vida de um determinado pintor, sobre um dado acontecimento histórico, a imagem dessa figura ou evento históricos eram adicionados à parede. Desta forma, o Tiago interiorizou a noção temporal, a escala de década, século e milénio, a relação entre datas, as contagens, a simultaneidade de acontecimentos mundiais e ainda, memorizou em definitivo uma série de datas históricas importantes, por poder olhar diretamente para eles durante anos. Além de tudo, foi um trabalho bastante artístico com um investimento longo de tempo e dedicação, dotado de paciência e pormenor e em que o Tiago se envolveu a longo prazo.

Artes Criativas

Esta é uma disciplina que prioriza a criatividade e a capacidade de elaboração de desenhos, pinturas, construções, instalações e cartazes, realizados em diversos materiais e suportes. Desenhar, pintar, recortar, colar, são tarefas que além de desenvolverem a motricidade fina e a criatividade, criam momentos de gosto e lazer. Muitas vezes, os trabalhos realizados em Artes Criativas debruçam-se sobre temas de outras disciplinas como História, Cidadania e Literatura, por exemplo. Por outro lado, no espírito de olhar o Mundo como uma grande sala de aula, há aprendizagens essenciais que se aprendem mesmo só a brincar, a cozinhar, a construir, a semear, a plantar e a aprender a manter. Muitas das nossas capacidades descobrem-se e viajam assim por momentos em casa, na floresta, onde seja, em que momentos informais ensinam e aplicam muito daquilo que aprendemos ao real e ao quotidiano. Artes e ofícios nunca são demais numa mente criativa com mãos engenhosas!

Associar o gosto estético à utilidade do que se produz é uma qualidade inestimável nos dias de hoje, na minha opinião. Fazer porque é preciso e de uma forma bela. Por exemplo, todas as fadas precisam de uma casa bonita, não é?

Apreciação Artística

Em Apreciação Artística, realizámos o estudo aprofundado de vários artistas, dos clássicos aos contemporâneos. Ao realizar o estudo de um artista, ao longo de várias semanas, aprendemos sobre a sua vida e obra. Fazendo o estudo da biografia do artista, aprendemos sobre o contexto histórico e cultural da sua vida, sobre o seu país de origem e os países importantes de passagem, pesquisámos e lemos obras literárias relacionadas. Ao estudar as suas obras, percebemos características de movimentos artísticos, distinguimos e comparámos artistas através das suas formas de expressão e técnicas características, observámos os vários materiais utilizados. Elegemos algumas das suas obras para desenvolver a nossa atividade artística prática, pintámos alguns dos seus quadros, desenhámos os seus esboços. Esta disciplina foi desenvolvida também com a irmã do Tiago, em momentos de partilha, de tintas e pincéis, de muita aprendizagem e produção artística. Enquanto amantes das Artes, quando os nossos filhos chegam à escola e desmistificam informações sobre a vida de Van Gogh, ensinam curiosidades sobre Leonardo da Vinci ou relatam a vida de Frida Kahlo, devemos ficar orgulhosos.

Cidadania

A Cidadania, na nossa casa, sempre se aprendeu em conversas, numa abordagem muito informal, em tom de debate saudável e de partilha. Desde muito cedo, começámos a conversar com os nossos filhos sobre o mundo, a vida, a sustentabilidade humana e ambiental, a diversidade cultural, entre tudo o mais. No ED, os domínios desenvolvidos formalmente ao longo do 1.º ciclo na nossa disciplina de Cidadania, trabalhados transversalmente nas outras disciplinas, focaram-se em torno dos direitos humanos, da igualdade de género, interculturalidade, desenvolvimento sustentável, educação ambiental, saúde, sexualidade, media, instituições e participação democrática, literacia financeira e educação para o consumo, bem-estar animal e voluntariado. O permanente estudo sobre as principais efemérides nacionais, internacionais e mundiais, a pesquisa da informação disponível relacionada com estas datas e o debate sobre os temas, foram sempre um meio natural de estudo, não só de conteúdos programáticos, como também de ampliação da cultura geral. Esta disciplina é sempre debatida em LGP, mas também é alvo de muitas pesquisas na Internet e da correlação com trabalhos de TIC e de Artes. É de notar também a importância do acesso a estes temas de interesse também através da leitura de textos temáticos e informações, promovendo a leitura objetivada, o ler com gosto e significado.

Dou dois exemplos de atividades quanto à disciplina de Cidadania. Num dos anos, no Dia Nacional do Surdo e Aniversário da APS, o Tiago esteve presente nas celebrações restritas do aniversário da associação (restritas pelas medidas de confinamento social) e assistiu a uma aula fantástica sobre a História da Comunidade Surda dada por vários membros presentes. Sim, no ED podem surgir muitos professores, enriquecendo-se pela diversidade de conhecimentos e de perspetivas e felizmente, vários amigos Surdos desempenharam este papel de professores informais e de modelos culturais. Fizemos sempre questão de ir semanalmente à APS, encontrar alguém muito especial, que é a nossa fada-madrinha e que foi fundamental em todo o acompanhamento que nos deu e por tudo o que nos ensinou.

Outro tema que interessou muito ao Tiago foi a Igualdade de Género – promover igualmente os direitos das mulheres e das raparigas e a igualdade de género em vários planos – político, económico, social e cultural –, contribuindo para a eliminação de estereótipos. Este foi um tema muito conversado e deixo aqui o que anotei na altura, quando aos nove anos coloquei ao Tiago a pergunta aberta: “O que entendes sobre a Igualdade de Género?”

 O Tiago relatou livremente o que aprendeu sobre o tema. Nomeou a importância de o género feminino ser respeitado em relação de igualdade ao género masculino. Frisou as várias desigualdades que se observam no mundo contemporâneo, a nível profissional (menos empregabilidade, salários mais baixos), o facto de as mulheres muitas vezes ficarem sobrecarregadas com as tarefas profissionais e as domésticas, não havendo divisão de tarefas entre casais. Falou nas culturas de outros países em que as mulheres são desprivilegiadas (não entram nas mesquitas, são obrigadas ao uso das burcas, são obrigadas a trabalhos esforçados, etc.). Historicamente referiu-se ao facto de as mulheres não terem direito ao voto e não terem acesso à escola, mencionando que em muitos países ainda é uma realidade atual. Referiu-se aos movimentos sufragistas na América e disse que várias mulheres começaram a destacar-se em profissões de áreas importantes como as Ciências e a Medicina. Disse que as mulheres sempre foram mais ligadas às profissões da área da Educação, por sempre terem estado ligadas ao longo dos tempos à educação dos filhos e da comunidade. Falou de vários problemas que vieram com a luta pela igualdade, em que por não se sentirem respeitadas no seu papel doméstico as mulheres quiseram ir trabalhar e ir ganhar dinheiro, nomeadamente: os filhos passaram a ficar muitas horas por dia longe das famílias e não ser a mãe que cuida deles e os ensina. As mulheres esqueceram-se da medicina natural e de muitos segredos antigos que sabiam e que as famílias perderam muito com isso. Disse que compreendia a mudança, mas que tinha pena destas coisas se terem perdido. Acha que quando os homens dividem esforços nas tarefas da casa com as mulheres não as estão a ajudar, mas sim a fazer o trabalho deles. Diz que os filhos preferem ter as mães e os pais presentes, que também a cuidar dos filhos tem de haver igualdade. Falou nos casos de violência doméstica e no medo que muitas mulheres sentem em sair de casa nestes casos, por não terem como sobreviver sozinhas com os filhos.

Em suma, acha que as desigualdades de género estão muito ligadas ao dinheiro e que as pessoas deviam respeitar-se umas às outras e não ao dinheiro que ganham, porque as mulheres que antigamente trabalhavam em casa, a cuidar dos filhos e da casa faziam um trabalho muito importante pelas suas famílias e mereciam ter sido respeitadas por isso, e não desrespeitadas por não ganharem dinheiro, porque todos ganham com o trabalho da mãe que cuida.

Tecnologias da Informação e da Comunicação (TIC)

Na atualidade, numa sociedade global pautada pela interconexão digital, pela velocidade da comunicação e da troca de informações, as crianças não são mais meras consumidoras dos conteúdos, mas também produtoras cada vez mais precoces. Neste sentido, as TIC vieram proporcionar, a par da multiplicidade de contextos e da diversidade cultural que caracterizam as comunidades, um palco amplo e abrangente em que importam as competências certas, digitais, humanas e éticas para que os seus atores possam agir em consciência, liberdade e segurança. Além deste processo de potencialização do bom uso das TIC, para os alunos Surdos, extremamente visuais nas suas estratégias internas para apreender a informação, estas constituem realmente agentes facilitadores, promovendo a comunicação, a consulta de informação útil às aprendizagens, o acesso a elementos visuais pertinentes e a criação de recursos pedagógicos promotores da construção do conhecimento. Desta forma, nesta disciplina transversal às demais pela ação diária relativa a pesquisas e produções para os mais variados temas, procurou-se desenvolver as atitudes críticas no uso de tecnologias, dos ambientes e dos serviços digitais; as competências de pesquisa e de análise de informação online, em que o estabelecimento de critérios de seleção se torna essencial tanto ao nível da significância, como da segurança do utilizador; a capacidade de comunicar de forma adequada, utilizando meios e recursos digitais; e, a criatividade, explorando ideias e recursos. De facto, o desenvolvimento da literacia digital e mediática está relacionado a múltiplos aspetos e competências que procurei desenvolver, levando o Tiago a participar ativamente no seu processo de aprendizagem e na produção de artefactos digitais. Aspetos como a deteção de fake news e a perceção do bullying digital, entre outros, despertam no sentido crítico dos atuais nativos digitais a capacidade de selecionar informação e de criar, individual e coletivamente, comportamentos corretos, seguros e potencializadores na utilização da internet.

Desde a utilização de programas como o Word para a escrita e edição de textos e o PowerPoint para criar cartazes, fichas científicas de animais, etc., exploraram-se inúmeros outros recursos digitais, numa perspetiva de construção dos saberes. No âmbito da utilização segura das redes sociais, criámos um perfil de Instagram privado onde o Tiago dedicou os conteúdos publicados ao ativismo ambiental, demonstrando as suas preocupações sobre os problemas atuais e tendo em consideração as regras de segurança na utilização desta plataforma, bem como a consciencialização sobre as regras de recolha de imagens na internet e os direitos autorais.

Explorámos o programa Scratch com exercícios simples de ambientação, introduzindo princípios básicos de programação. Por exemplo, o Tiago criou uma animação do Sistema Solar, incluindo os nomes dos planetas, os seus posicionamentos, cores e dimensões. Ao mesmo tempo que criava os seus artefactos, aplicava e consolidava conhecimentos, produzindo artefactos que são demonstrativos do que sabe e de como sabe.

Também a criação de uma conta Google e conta de e-mail foi um dos passos iniciais para o envio dos seus primeiros e-mails e aprendizagem das regras de utilização e netiqueta. Todas as ferramentas Google foram exploradas de forma progressiva e integradas na produção de trabalhos.

Como a maioria das crianças, o Tiago adora jogos digitais. Em TIC, além de jogá-los, numa perspetiva de game-based learning, em jogos já existentes ou criados por mim para o efeito, aprendeu a fazer os seus próprios jogos e a partilhá-los com a comunidade digital. O Wordwall e o Kahoot são exemplos de excelentes de plataformas de aprendizagem que permitem fazer este tipo de trabalho.

Outro exemplo de plataforma ideal para a criação de aulas digitais e interativas é o Edpuzzle. Com esta ferramenta podemos criar e compartilhar vídeo-aulas com formato interativo, integrando nos vídeos, criados ou selecionados, vários elementos como perguntas, imagens e anotações. O Edpuzzle permite uma aprendizagem visual, através do uso de diversos elementos; individualizada, respeitando o ritmo de cada um; flexível, adaptando-se a modelos de ensino tanto presenciais, como híbridos e de EaD, em qualquer nível de ensino; e de fácil retenção, pela curta duração das aulas, facilitando a compreensão pela inclusão de elementos interativos em preferência a aulas demasiado exaustivas. Com uma intencionalidade centrada no aluno, o Edpuzzle desperta o pensamento crítico, fornece feedbacks programados pelo professor, que fomentam a motivação do aluno no processo de aprendizagem, enquanto por outro lado permite a obtenção de análises instantâneas que auxiliam o professor na avaliação e na diferenciação do ensino feita em conformidade aos dados recolhidos. No site encontramos uma série de aulas padronizadas que poderão servir de recurso educacional aberto “pronto a usar”, mas mais que tudo, permite a criação original de aulas, totalmente adaptadas às necessidades dos alunos. Neste sentido, permite a gravação de ecrã, bem como a incorporação de qualquer vídeo da internet, desde que o seu licenciamento assim o permita (domínio público ou licenças Creative Commons). Numa perspetiva socio-construtivista e conectivista do ensino, creio que esta tipologia de ferramenta, muito intuitiva e facilmente personalizável quantos às especificidades dos diversos contextos de uso e necessidades dos alunos, tem muito a oferecer em termos da qualidade das atividades pedagógicas, permitindo criar aulas muito visuais e interativas, ideais para qualquer criança, em especial para as que aprendem de forma fundamentalmente visual.

Em suma, desde a pesquisa em sites fidedignos, no caso do Tiago sempre adorou consultar os sites da UNESCO e da UNICEF, por exemplo, a criação de BDs digitais, jogos educativos, apresentações de temas tão variados como os de cidadania social, espécies de animais e plantas em projetos de estudo sazonais e a vida dos seus pintores preferidos, a disciplina sempre permitiu uma exploração pedagógica muito aprofundada e ao mesmo tempo, muito satisfatória para o meu aluno, promovendo a sua motivação e um nível de envolvimento muito grande nas suas próprias aprendizagens.

Educação Física

A componente física da educação de uma criança é essencial, promovendo não só a saúde e bem-estar ao nível do corpo, mas servindo igualmente o propósito da saúde mental e emocional, do desenvolvimento psicomotor e da diversão. O Tiago praticou Taekwondo com a irmã ao longo do ED, num dojo federado do nosso concelho, com um grupo de crianças das mesmas idades, prática ligada também à socialização e à pertença a um coletivo. A par disto, sempre demos muito ênfase à atividade física e ao desporto no dia a dia.

Como o ED é um projeto familiar, o pai do Tiago sempre teve muita intervenção nesta disciplina, assim como na Matemática e nas Artes Criativas. O Tiago tinha duas a três aulas semanais de Educação com o pai, em que estavam contemplados os aspetos físicos a serem trabalhados segundo o plano curricular da disciplina, numa diversidade estudada de atividades completas. Nos outros dias, os raids de bicicleta e os jogos ao ar livre sempre foram momentos lúdicos, que trabalhando o corpo, descansavam a mente e alimentavam o coração, em família.

Passeios na Natureza

A Natureza sempre foi uma sala de aula privilegiada por nós. Muitas vezes transportámos as nossas aulas para a rua, com os livros e materiais dentro das mochilas e uma enorme vontade de explorar. Sempre adorámos as nossas aulas nos jardins, nas mesas de pedra do Parque dos Castanheiros, no Palácio Nacional, ou pela Serra. Sintra é um lugar cheio de recantos e cenários ideais para passar uma boa manhã ou tarde de aulas. 

Mas, tínhamos em especial uma tarde da nossa semana em que a prática era concretamente passear na Natureza. Nestes passeios observávamos tudo em redor, como as mudanças das paisagens com as estações, fazíamos explorações científicas de plantas e animais, estudávamos raízes, ninhos, tocas, fazíamos desenho à vista, aprendíamos sobre a História desta terra riquíssima, recolhíamos elementos naturais para criações artísticas, trabalhávamos a orientação e os pontos cardeais, observávamos o ciclo da água, enfim, a Natureza é um recurso ilimitado de saberes e de vivências.

O outono é uma estação do ano maravilhosa no que toca a oportunidades de explorar temas e viver experiências na Serra de Sintra, como a primeira recolha de castanhas após uma grande chuvada, dançar de galochas no meio das folhas, caminhar até ao Castelo dos Mouros enquanto fazemos uma aula de Botânica e de História, recolher folhas, lenha e outros materiais, estacas de azevinho para fazer propagação, reconhecer cogumelos comestíveis, aprender sobre as nascentes, o ciclo da água e sobre as florestas sustentáveis. E tanto mais! O nosso precioso património sintrense com os seus monumentos e igrejas fazem as delícias dos nossos passeios, visitando e revisitando lugares que acrescentam sempre oportunidades de abordar novos temas e relacionar conhecimentos já mobilizados.

Nos invernos, apesar das condicionantes do clima, existe tanto para explorar! Passeámos muito pela Serra, mantendo as nossas observações e aprendizagens de campo. Pudemos explorar numerosos temas, como aprender sobre as florestas sustentáveis em Monserrate, observar os lagos no tempo das chuvas em contraste com o que observámos no verão, explorámos os cursos e as minas de água, investigámos várias espécies de cogumelos, observámos os anfíbios e as toupeiras, entre muitas outras atividades que surgiam espontaneamente nos nossos passeios. Com o despontar da primavera, vêm novas mudanças na paisagem, a floração de inúmeras espécies vegetais, o regresso de aves migratórias, o ressurgimento visível dos insetos e muito mais, em constante aventura e descoberta. E esta prática em especial do ED, os nossos Passeios na Natureza, mantivemo-la desde então, porque mesmo o Tiago estando na escola, o ensino doméstico tornou-se um modo de vida que ficará sempre enraizado em nós.

Museus e Exposições

Sempre valorizámos muito a ida a museus e exposições temáticas e outros locais que nos ensinam e dão experiências físicas, visuais, culturais e cognitivas sobre temas que estudámos, ou sobre temas completamente novos que nos despertam a curiosidade e a vontade de aprender mais. A ida a um museu constitui um projeto, desde planear em conjunto a viagem, os objetivos do que queremos aprender e o que podemos fazer com a informação e elementos que recolhemos. Esta dimensão de cidadania ativa implica, inclusive, aprender a utilizar os espaços da cidade, os transportes, e todos eles constituem recursos de aprendizagem informais que a vida real e os seus espaços concretos têm para oferecer.

Quando a Educação vive em nós, temos escola em qualquer lugar, uma escola aberta e humanista que nos ensina em permanência, em cada descoberta e em cada rotina. Até os simples passeios do dia a dia são relevantes, desde a ida à biblioteca para requisitar livros, ao mercado municipal para comprar fruta. Todos estes passeios nos trazem experiências, interações e aprendizagens com a comunidade e com as tarefas quotidianas.

Conclusão

O percurso educativo em ED concorreu, a par da sua formação pedagógica, a estruturar um indivíduo sensível e ligado ao mundo, com uma capacidade crítica pertinente, comunicando adequada e abertamente e capaz de procurar e aceder à informação, no gozo pleno da sua cidadania enquanto criança em desenvolvimento. Importa notar que a crescente autonomia na leitura e na escrita dá ao Tiago um grande gosto pessoal e facilita muitíssimo o seu acesso ao mundo e à cultura, grande objetivo que sempre perspetivámos como essencial e que temos uma enorme gratidão por testemunhar. O nosso Tiago estará sempre de parabéns pelo seu esforço e pelos resultados conquistados. Agora, já integrado na escola, o meu compromisso mantém-se no sentido de continuar a ensinar e a aprender para apoiar o meu filho ao longo de todo o seu percurso escolar. Acima de tudo, o que quero é vê-lo ser feliz e responsável pelo seu próprio sucesso. 

Tiago, dedico-te este capítulo que conta um pouco da história sobre a nossa Escola-Casa, mas mais do que tudo, a verdadeira história vai viver sempre dentro dos nossos corações, meu querido companheiro.