Capítulo 8 – Com as mãos e
através das mãos
Autor: Bruno Filipe Pedroso Duarte
Coautor: Carlos Manuel Ribeiro Santos
Palavras-chave: formação profissional, informática, surdo-cegueira
Citação: Duarte, B. & Santos, C. (2023). Com as mãos e através das mãos. In M. Francisco, C. Tomás & S. Malheiro (Orgs.). 12 histórias educacionais: Ser diferente na diversidade. Práticas pedagógicas em contextos pouco visíveis. [Online]. LEAD, Universidade Aberta.
Das dúvidas à ação
Quando recebi o convite de partilhar a minha prática educativa inovadora, a primeira coisa que me surgiu foi a expressão popular “Em terra de cego quem tem olho é rei.”, cujo significado remete para alguém que consegue ver além das circunstâncias, achando que esta seria uma boa forma de resumir todo o processo que ocorreu e os benefícios que este trouxe.
Dia 5 de janeiro de 2004, um dia que me ficará para sempre na memória e, acima de tudo, um dia em que os receios foram tantos e as incertezas ainda mais, mas vamos começar pelo princípio…
Decorria o ano de 2003 e eu encontrava-me a exercer funções na área da formação profissional numa IPSS, em Caldas da Rainha, sendo-me apresentada uma proposta de criar e dinamizar uma área de Tecnologias de Informação e Comunicação (TIC) no Centro de Atividades Ocupacionais, dando resposta a pessoas com deficiência severa e profunda.
Após algum tempo de reflexão, medindo os prós e contras da decisão, aceitei a proposta, a iniciar em janeiro de 2004. E aqui começou uma das maiores aventuras da minha vida… o contacto com uma pessoa muito especial, mas acima de tudo com uma garra e uma vontade de aprender surpreendente.
É com este enquadramento que voltamos ao nosso início desta história, ao dia 5 de janeiro de 2004, 9 horas da manhã, novo serviço, novos colegas de trabalho e novos clientes a precisar de uma resposta… A ansiedade estava ao rubro. O dia começou com a visita ao espaço para conhecer as áreas do Centro de Atividades Ocupacionais. Neste percurso, recordo uma situação que me chamou mais a atenção: de frente para mim, vejo uma pessoa, com cerca de 40 anos, pele clara, muito bem penteado, cachecol ao pescoço, óculos escuros na face e uma máquina de escrever Braille à sua frente … era o Carlos, a ignição desta grande aventura.
O Carlos, que residia e reside com os pais numa aldeia circundante à IPSS, é extremamente curioso e sempre atento ao que se passa ao seu redor, quis saber quem eu sou, mas sem verbalizar uma única palavra, apenas gestos… “Ai, onde vim eu me colocar?” – pensei de imediato. Apesar de ter desenvolvido atividades com cegos, era a primeira vez que trabalhava com um cego-surdo. Relembro hoje, com algum entusiasmo, desse dia e do que passou, naquele preciso momento, pela minha mente… eram tantas dúvidas – “Será que vou conseguir?”, “Serei eu a resposta que ele necessita?”, “Se eu falhar, o quanto é que o poderei prejudicar?”, e muitas outras dúvidas e receios, mas como nunca recusei um desafio, decidi aceitar, com o pensamento que poderia potencializar algo mais para o Carlos.
Assim chegou o dia 1 de trabalho com o Carlos.
Muito receio, da minha parte, ao nível comunicacional (“Será que me vai perceber?”, “Serei claro nas mensagens transmitidas?”, …) e de repente o Carlos, lança a mão direita ao meu rosto e começa a explorá-lo… Estava a conhecer-me fisicamente… “E agora? O que eu faço? Como início a comunicação?”, então ele segura na minha mão e pede para escrever na dele… “Ufa… vamos lá experimentar… não parece tão difícil assim” – pensei eu. Ao longo dessa manhã, de descoberta, estivemos a conversar sobre as expectativas dele em relação ao meu trabalho… sim a conversar, através do desenho das letras na palma da mão direita de ambos, eu na dele e ele na minha, criando-se uma cumplicidade enorme e uma interpretação de ambas as partes. Foi uma manhã de troca de conhecimentos, de como era o outro e o que cada um esperava com esta partilha.
Lembro-me que terminei esse dia com um sorriso grande e com a ideia que dali poderia surgir algo muito interessante.
No dia seguinte, decidi fazer uma abordagem de trabalho com o Carlos e foi aí que a máquina de escrever Braille, com a sua estrutura inconfundível, entrou no meu espaço de trabalho. Ao longo dos dias/semanas, aquele som, constante e tão característico do equipamento, prejudicava a concentração e muitas das vezes a interpretação verbal de alguns colegas que partilhavam o mesmo espaço de intervenção. Então, tomei uma decisão: “informatizar” a vida do Carlos de forma a incrementar a sua autonomia e melhorar o ambiente, retirando aquele som perturbador para os outros.
Recordei que no serviço onde tinha estado previamente a desempenhar funções, naquela instituição, havia uma linha de Braille automática que não estava a ser utilizada. Pensei que seria interessante requisitá-la para utilizar com o Carlos, mas novas dúvidas surgiram: “Será o passo certo a tomar?”, “Se não conseguir utilizar, será que a desmotivação pode influenciar a sua abertura a novos desafios?”…
Decidi questionar alguns colegas em relação a este procedimento, tendo obtido opiniões completamente díspares, tais como “Arrisca” ou simplesmente “Estás a voar muito alto… ainda és novo”. Como os obstáculos geralmente não me demovem de alcançar os objetivos, em fevereiro de 2004 fui buscar a dita linha automática Braille, uma Alva Braille 40, juntamente com uma impressora EVEREST, instalando o equipamento num computador com características muito específicas (tinha de possuir MS-DOS devido ao software do equipamento de impressão). Neste momento, iniciou uma nova aventura.
Tendo já informado o Carlos do que estava a planear e tendo ele aceitado o desafio, no primeiro dia de contacto com o equipamento sentiu-se algum receio, de ambas as partes, mas a calma e vontade de aprender do Carlos foi surpreendente, começando de imediato a explorar o teclado e questionando-me sobre a localização de cada tecla e respetiva função.
Nesta primeira fase, de forma a auxiliar a navegação no teclado, foi impresso um miniteclado, em Braille, funcionando como mapa. O mapeamento de teclas, na sua correta ordem e posição, foi realizado através do auxílio de tinta de relevo, dando assim a conhecer as diferenças de forma e posição existentes num teclado QWERTY. Uma semana, foi o período em que se trabalhou a localização de teclas, tal como a sua função, sendo este trabalho auxiliado pela leitura da própria linha Braille automática. Ao fim de quatro semanas, o Carlos, navegava no teclado como qualquer pessoa sem condicionamento visual, demonstrando que por muito receio que ele tivesse, estava ali comigo para aprender e para melhorar. Objetivo 1 alcançado.
Com o passar do tempo, a autonomia foi cada vez evidente, realçando um grande à-vontade na utilização das novas tecnologias, mas faltava algo… isto não devia limitar o Carlos, mas sim potencializar mais as suas capacidades.
Uma das situações que me fazia pensar era na informação limitada à qual o Carlos tinha, acesso, porque além de ser cego, era surdo. O que poderia ser feito além da impressão em Braille das notícias referentes ao seu contexto social?
Foi em pleno abril, desse ano, que obtive conhecimento da Visão Braille, de distribuição gratuita, e que abordava assuntos da atualidade e do mundo. “Uma nova oportunidade de conhecimento.” – pensei eu, remetendo de imediato um e-mail a solicitar o seu envio. Após algumas horas recebi um e-mail a confirmar o envio. Mais uma vitória. Mais um canal de comunicação a explorar e o acesso ao conhecimento a expandir.
Sempre muito atento ao que se passa ao seu redor, esta nova forma de aceder a mais informação, ajustada à sua faixa etária, trouxe um novo mundo de saberes, alargando-se horizontes e dando a conhecer notícias/factos atuais, numa sociedade de informação sempre em mutação. Estava aberta a “caixa de Pandora”…
Como em qualquer história informática, os problemas surgiram… a linha Braille deixara de funcionar… “E agora? O que poderemos fazer de forma a aumentar a autonomia/independência do Carlos?”. Foram alguns meses sem contacto informático devido à avaria da linha Braille, cujo orçamento de reparação era superior à aquisição de uma nova… parecia que tudo estava a cair por terra.
Mas nem tudo são espinhos e surgiu a possibilidade da oferta de uma nova linha Braille para uso pessoal do Carlos… mais autonomia e a tão almejada independência que em tanto se investiu.
Começa então uma nova fase na intervenção e de exploração… uma nova linha, um novo software. Chegara o esperado dia… a entrega da nova linha Braille, uma Seika 40. Com o Carlos ao meu lado, sempre curioso, questionava-me sobre as suas características e a razão de ser tão pequena em relação à anterior. “Será que consegue fazer o mesmo que a antiga?” – perguntava-me ele através de língua gestual, tão bem apurada entre ambos e com gestos tão personalizados por nós. Tentando transmitir-lhe segurança, assegurei que estava tudo bem e que esta seria muito melhor e muito mais eficaz do que a anterior… Tudo a correr bem… entrega realizada, linha nova, mas onde estava o software de leitura de ecrã? A entidade que oferecera a linha tinha-se esquecido deste pequeno/grande pormenor… “Mais um problema.” – pensei eu, mas ao estar sempre em busca constante de conhecimento disse que não haveria problema caso ela suportasse software Open source… (viva o NVDA).
Mais um obstáculo ultrapassado e mãos à obra…
Com a chegada deste novo equipamento outra situação insurgiu-se… a possibilidade de o Carlos possuir um computador em casa.
Ao longo de um mês foi realizado um treino informático (ligar/desligar tanto a linha Braille como o software necessário), em contexto institucional, de forma a potencializar a autonomia da utilização do novo equipamento em diversos contextos, posteriormente instalando-se um computador em casa do próprio e possibilitando o aumento de comunicação, quer seja com os seus pais, de idade avançada, quer seja com outras pessoas que frequentavam a sua casa. Chegou a fase mais importante desta etapa… a montagem de um computador em casa. Mais uma vez, independentemente da capacidade demonstrada, as dúvidas começaram a surgir: “Será que se vai adaptar bem?”, “Não estando eu presente, será que ele conseguirá?” … mas como sempre, para a frente é que é caminho e toca a arriscar…
Ligou-se o equipamento, em conjunto com o Carlos, de forma a perceber o local de ligação de cada periférico e ele sorriu e diz-me “Agora já posso trabalhar também em casa”, deixando-me feliz e reconfortado no meio das minhas incertezas todas. Pensei de imediato para mim “Ele está preparado”, mas como qualquer “pai coruja” custa ver os filhos voar…
Vários anos passaram e a evolução do Carlos no manuseamento destes equipamentos foi notória. Com tudo encaminhado e cada vez a demonstrar uma maior autonomia, chega um novo desafio… a Internet. Porque é que o Carlos não poderia aceder a um novo mundo de comunicação? Quem seria eu para o impedir a obter mais e melhor informação ao minuto?
Então começa uma nova fase… a da globalização da informação.
Ao ter como objetivo a promoção de um maior leque de informação, esta fase foi subdividida em várias etapas:
- O que é internet;
- O que significa on-line;
- O que é um motor de busca;
- Como pesquisar informação;
- Veracidade da Informação.
Numa fase inicial foi explicado e debatido, entre ambos, o que era a Internet, como e porque surgiu, enaltecendo as suas potencialidades, mas também alguns perigos na sua utilização. Nesta fase também foi abordado o termo “on-line” e a sua diferenciação face à informação que o Carlos tinha.
Noutra fase foi explicada e experienciada a utilização de um motor de busca, alertando-se para a situação das Fake News. Estávamos no início de 2020 e foi então que chegou a COVID-19. Mais um problema! Tivemos de suspender a abordagem à Internet e aos seus componentes.
Com a chegada da situação pandémica global, as instituições tiveram de moldar os seus procedimentos, os seus contactos e acima de tudo a forma como encarar e auxiliar o Outro, sem o colocar em risco ou perigo de saúde. Nessa altura, em que cada um de nós devia evitar os seus contactos ao máximo, a maior dúvida surgiu-me “O que se poderá fazer se o Carlos precisar de algo? Ficará privado de obter informação a não ser aquela transmitida pelos seus pais? De que forma poderei auxiliar mais e melhor?” Atualmente, ao recordar-me desse período, confesso que não foi muito agradável, tendo apenas ido algumas vezes ao seu domicílio de forma a prestar os cuidados tecnológicos mínimos que ele solicitava.
Num período pós COVID-19, em que o Carlos regressa regularmente à instituição denotei alguma “ferrugem” nas suas competências informáticas, sendo resultado de uma situação mais preocupante. A linha Braille atual estava com problemas e segundo a assistência, devido a ser um modelo antigo, teria de ser mandada para a Coreia para arranjo, não se sabendo o tempo que poderia demorar ou se haveria regresso da mesma. Mais uma vez o problema de equipamento estava a impedir de alcançar mais e melhor conhecimento.
Atualmente, a linha ainda funciona, mas o Carlos encontra-se com um processo de ajudas técnicas a decorrer, aguardando o equipamento solicitado para a promoção de uma vida mais autónoma e informada, e que permita também o recomeço das atividades suspensas relativas ao uso da Internet e às possibilidades oferecidas por esta.
Questionando-o sobre este processo é curioso como ambos rimos a relembrar o nosso percurso, os nossos medos, mas, de igual forma, a festejar as nossas conquistas.
Assim, posso concluir e indo ao encontro do provérbio popular “Em terra de cego quem tem olho é rei”, o qual referi no início, que o conjunto de situações inerentes ao Carlos, que levou a implementar e promover um conjunto de novas práticas pedagógicas, desafiando constantemente a minha zona de conforto em prol do Outro, mas de igual forma me obrigou a inovar e ajustar-me a novos contextos insurgentes, mas que tudo isto vale a pena quando nos dizem “Agora as pessoas conseguem compreender melhor o que eu quero” (Carlos).
O impacto da tecnologia na minha vida
A informática trouxe-me muitas coisas boas. Através do computador consigo ler, coisa que nunca tinha feito, nunca tinha lido.
O computador ajuda-me muito, incluindo a comunicar e socializar. Através da linha Braille consigo comunicar com mais pessoas. Consigo transmitir mensagens e receber.
Carlos Manuel Ribeiro Santos